O cristianismo, não diferente do judaísmo, é também uma religião de tempo, de história, uma vez que o Verbo se historicizou, fazendo-se carne (cf. Jo 1,14). Sobre este tema, frente a muitas heresias enfrentadas nos primeiros séculos, a escola de Alexandria preferiu utilizar o termo sarx (carne), na tentativa de salvaguardar uma teologia “de cima para baixo”, exaltando a unidade do ser divino de Cristo, mas colocando em risco sua humanidade. De um outro lado, a escola de Antioquia aderiu ao termo anthrôpos (homem), preocupada em afirmar nossa união com o Verbo, num movimento “de baixo para cima”, porém, acabou por arriscar a união das duas naturezas (divina e humana). Estes dois aspectos cristológicos tiveram grande repercussão nos séculos IV e V, mas ambos condenados nos Concílios de Éfeso (431) e Calcedônia (451) . Por isso, o que mais nos interessa aqui não é aprofundar termos e ideias teológicas, e sim a certeza dessa grande diferença do Deus de Israel diante dos demais deuses, ou seja, sua simpatia pelo ser humano. Ele quis se interessar e participar de nosso cotidiano, isto é, de nossa história.
A substância de nossa fé é dada tanto na história como no pensamento, isto é, em situações e conceitos. Nós aceitamos ideias e recordamos eventos. Quando dizemos “Eu creio” está subentendido “Lembro!”. Uma das ideias fundamentais da fé católica, podendo ser encontrada no parágrafo 1124 do Catecismo, expressa-se pelo termo latino lex orandi, lex credendi (“a lei da oração é a lei da fé”), ou seja, a Igreja crê aquilo que ela reza. Se observarmos o Credo, notaremos que o mesmo encontra-se repleto de ideias e eventos que, trinitariamente resumidos, poderíamos catalogar em três “obras”: criação, redenção e santificação, movidas pela relação das três Pessoas divinas. E ainda: poderíamos perguntar por que o nome de um pagão (Pôncio Pilatos) foi parar em nossa profissão de fé. Simplesmente para mostrar que nossa “crença” tem data e geografia bem precisas. Gostando ou não, todas as vezes que recitamos o Credo citamos a figura histórica desse governador da Judeia (26 a 36 d.C). Com efeito, nossa fé não se trata de uma fábula, muito menos de uma filosofia, mas antes de um grande evento, por isso, de uma grande celebração de Deus para nós e de nós para Deus.
“A Trindade econômica é a Trindade imanente”, afirmava o jesuíta Karl Rahner (1904-1984), uma das peças-chave do Concílio Vaticano II, o que, em outras palavras, poderia ser compreendido que nossas verdades não oscilam na eternidade, no abstracionismo, sobretudo no tocante ao eixo central de nossa fé, que é a Trindade. O tempo tem uma função muito importante, pois não concebemos a Deus como ser inanimado, alheio ao mundo, mas dotado de vontade e liberdade, eis uma religião que se expressa muito mais no tempo que no espaço.
A história é a verdade de um povo, não é simples repetição, porque ela sempre tenta novas vias, é encontro com a eternidade, com o transcendente, pois a história tem uma memória; o homem pode esquecer, a história não. A função da memória na história é manter juntos desespero e esperança, provocação e promessa, a despeito da tendência a rejeitar toda a esperança. Apreciamos os objetos que estão dispostos no espaço, mas, na verdade, o que é realmente precioso se encontra mais no tempo do que no espaço. Os monumentos vivem graças à memória dos que olham as suas formas, enquanto os momentos da alma duram mesmo quando se perderam no fundo da mente.
O deus da filosofia é o deus da natureza; o nosso Deus é o deus da história. Quando Cristo disse “fazei isto em memória de mim” (Lc 22,19), estava se referindo ao termo hebraico “zikaron” (זִכָּרוֹן) que significa não apenas recordar, mas atualizar, reviver, fazer acontecer novamente, por isso pôde afirmar “isto é o meu corpo”, e não poderia estar falando metaforicamente. Portanto, mais coerente seria traduzir por “fazei isto em meu memorial”, pois se se tratar apenas de simples recordação, perder-se-á todo sentido e efeito de nos reunirmos para celebrar esse mistério “até que Ele venha” (1Cor 11,26).
Hoje, fora apenas de nossos templos físicos, em situação de pandemia e isolamento social, não podemos esquecer a sacralidade de nosso corpo, pois é santuário do Espírito, da santidade de nossas casas e famílias, igrejas domésticas, e que Cristo é o mesmo ontem, hoje e sempre (cf. Hb 13,8), cumprindo sua promessa de assistir-nos até a consumação dos séculos (cf. Mt 28,20). Enfim, do culto perfeito e agradável a Deus, repleto de misericórdia, da verdadeira adoração “em espírito e verdade” (Jo 4,23). Dito isso, não teria sentido existirmos e não fazermos história, não marcarmos nosso tempo. No mundo somos em torno de 7,7 bilhões de pessoas, sendo que a maioria vive “ao léo”, como cantava Roberto Carlos desde os anos 1970 em sua canção “Jesus Cristo”, uma multidão que caminha sem saber aonde vai, sem perspectiva ou projeto de vida, esquecendo-nos de nossa identidade divina. Fomos feitos termo da criação, imagem divina e príncipes do mundo.
Uma Semana Santa que ficará marcada. Um dia, olharemos para nossos filhos e netos e diremos: “eu fiz parte dessa história”. Ou melhor, “eu fiz história”. Igreja é mais que estar, é ser. É mais que espaço, é tempo, é história, é memória.
BIBLIOGRAFIA
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