O Judas que há em cada um de nós

O Judas que há em cada um de nós

Na manhã desta Quarta-feira Santa (08/04), o Papa Francisco trouxe à tona uma impactante mensagem durante homilia na Casa Santa Marta (Roma), elucidando interessante crítica àqueles que se aproveitam da crise social e econômica provocada pelo coronavírus.

Rezemos, hoje, por aqueles que neste tempo de pandemia fazem comércio com os necessitados. Aproveitam-se da necessidade dos outros e os vendem: os mafiosos, os agiotas e tantos outros. Que o Senhor toque o coração deles e os converta.

Homilia de Missa na Casa Santa Marta, 08/04/20.

Rezou o Papa, refletindo o evangelho de Mateus 26,14-25, que trata da traição de Judas Iscariotes. A figura desse Apóstolo de Jesus continua emblemática, mesmo após dois milênios de história do cristianismo, com raríssimas informações escriturísticas a respeito do mesmo. Geralmente, seu nome é logo associado à traição, ao charlatanismo, ao egocentrismo, ao amor ao dinheiro, à apostasia da fé. Há, inclusive, aqui no Brasil, tradições populares de apedrejar e queimar bonecos representando sua figura. Tais atitudes foram erroneamente interpretadas e mal associadas, inclusive, com a ideia de anti-semitismo, relacionando sua figura à do povo judeu, no entender de um acordo entre o apóstolo e as autoridades religiosas de seu tempo. Sobre essa ideia, a Igreja Católica já definiu, embora tardiamente, de forma oficial em 1965 através do número 4 da Declaração Nostra Aetate, inocentando os judeus em geral da crucifixão de Cristo. No compreender da Igreja, fomos nós quem entregamos e crucificamos a Cristo com nossos pecados.

Há em nós coerência o suficiente para tais gestos de apedrejar e queimar a Judas, ou o Apóstolo pode representar aquele bem que evitamos fazer e o mal que não resistimos? (cf. Rm 7,12-25). Será que a figura de Judas está a dois mil anos distante de nós ou trata-se de uma realidade presente? Há no Antigo Testamento profecias intrigantes que rezam:

“Até o confidente, em quem eu confiava, que comia do meu pão, levantou o calcanhar contra mim” (Sl 41,10); “Mas és tu, homem como eu, meu familiar, meu confidente, saboreávamos juntos a intimidade, na casa de Deus andávamos com emoção” (Sl 55,14-15); “Que cada um se guarde de seu próximo, e não confieis em nenhum irmão. (…) ele diz paz ao seu próximo, mas, dentro de si, lhe prepara uma cilada” (Jr 9,3.7b).

BÍBLIA DE JERUSALÉM. 3ª ed. São Paulo: Paulus, 2004.
Detalhe de mosaico do Pe. Marko Ivan Rupnik. Santuário São João Paulo II, Washington DC.

Em 09 de abri de 2006, Judas ganhou duas horas inteirinhas em um documentário especial da National Geographic acerca de pesquisas sobre um papiro gnóstico em língua copta atribuído a seu nome, provavelmente datado do século IV ou V, ou seja, bem depois dos evangelhos canônicos, e que fora descoberto em 1978 nas proximidades de El-Minya, no Médio Egito. Os 80% de texto salvo juntamente com outros manuscritos sob orientação do professor Rodolphe Kasser, de Genebra, mostram um Judas bem oposto àquele narrado pelos evangelhos canônicos:

A afirmação central desse Evangelho é que Judas foi o melhor amigo de Jesus, possuindo mais conhecimento que os outros discípulos. Por isso Jesus o teria encarregado de traí-lo por amor à salvação, pois, sem a traição, Jesus não teria sido crucificado e não teria podido ressuscitar. Judas teria perguntado a Jesus o que receberia em troca da traição. Jesus respondeu-lhe que, em troca, todo o mundo o odiaria para sempre e o condenaria, mas ele brilharia no céu como uma estrela especial.

ZILLES, 2006, p. 906.

Mas é preciso se atentar que desde o século II haviam seitas gnósticas como a dos cainitas, que reverenciavam Caim e Judas, combatidas por grandes teólogos como Santo Irineu. Os gnósticos são conhecidos por não se preocuparem com dados históricos, antes se ocupavam em fabular aquilo que não concordavam, pois são dissidentes cristãos, tornaram-se referência em transformar aspectos bíblicos negativos em positivos. Não trazendo novidades ou verdades relevantes sobre Jesus, seus textos acabam revelando mais sobre sua ideologia que a seu conteúdo propriamente dito. “Em vista dessas informações, só resta concluir que o sensacionalismo, com que o texto está sendo anunciado pela mídia, obedece a interesses não-científicos”, defende o teólogo e professor Urbano Zilles, que traduziu o texto inglês do referido “evangelho” para o português em 2006, podendo ser lido aqui.

Mas é no Novo Testamento que a personalidade de Judas se cristaliza em nosso imaginário. No capítulo 13 do Evangelho de João encontramos o relato da “última ceia” de Jesus com os seus discípulos. Nos versículos 21 a 30 está o anúncio da traição. Entre luzes e trevas, o que merece destaque neste evento são as demostrações de afeto e intimidade do Mestre para com aquele que o traiu por 30 moedas de prata, a começar pelo gesto de estar à mesa com os seus, um aspecto fortemente antropológico que, para a cultura israelita, denota intimidade. Afinal, não é qualquer pessoa que convidamos a estar em nossa mesa! As alianças mais importantes da Bíblia foram seladas ao redor de uma mesa, como ocorreu com Abraão: “Melquisedec, rei de Salém, trouxe pão e vinho, ele era sacerdote do Deus Altíssimo” (Gn 14,18).

É também na cena da “última ceia”, em meio à traição, que pela primeira vez aparecem as enigmáticas expressões joaninas “lado de Jesus” e “o discípulo que Jesus amava” (Jo 13,23), revelando um aspecto particular do quarto evangelho. Em nenhum momento Jesus chama Judas de traidor, apenas antecipa a seu grupo que iria ser traído (v. 21). Mas não é só, Jesus escolheu seus apóstolos ciente de suas fraquezas, o tempo todo conheceu o coração de Judas, sabia que ele amava mais ao dinheiro que a Deus, sempre esteve a par de sua má inclinação, como já demonstrado na cena da unção em Betânia (cf. Jo 12,4-8), no entanto, em nenhum momento seus pecados foram expostos pelo Mestre. Pode-se ver aqui uma fundamentação bíblica em torno do sigilo sacramental da confissão, uma realidade inviolável e indiscutível para a Igreja (cf. Mt 26,25; Catecismo da Igreja Católica, 1476; Código de Direito Canônico, 893). Outro bonito gesto de Cristo foi embeber o pão no molho (v. 26), outra atitude que, na cultura judaica, sinaliza afeto. Após isso, Satanás entra no coração atribulado do Apóstolo (v. 27). Mesmo assim, foi com outra demonstração de afeto, isto é, com um beijo, que judas o entregou (Lc 22,47-48).

O fim de Judas continua um enigma. Embora saibamos que tenha se enforcado (cf. Mt 27,5), fazendo jus à exortação “ai daquele homem por quem o Filho do Homem for entregue! Melhor seria para aquele homem nem ter nascido!” (Mt 26,24), ainda não responde necessariamente a inquietação acerca da condenação de Judas ao inferno, teoria ainda muito discutida, ainda mais sabendo de todas as demonstrações de carinho e respeito do Mestre por esse pecador. O que sabemos é da grande lição desse drama humano, que ninguém pode servir a dois senhores, não podemos servir a Deus e ao dinheiro (cf. Mt 6,24). Não se pode esquecer também que não foi apenas Judas que traiu Jesus entre os doze, o Mestre foi negado três vezes por seu amigo Pedro (cf. Jo 18,15-27), foi alvo de dúvida por Tomé (cf. Jo 18,24-29), abandonado pelos onze na hora da cruz (Jo 16,32; 19,25-27), teve de conviver com a ambição de desejarem ser o maior de todos (cf. Lc 9,46-48), com a falta de fé (Mt 6,29-32), e assim por diante…

Ainda em sua homilia citada no início, outros ensinamentos daqui extraídos, para o Papa, é que

(…) existem Judas, pessoas que traem, inclusive seus entes queridos, vendendo-os, para interesses próprios. Também hoje existem pessoas que querem servir a Deus e ao dinheiro, exploradores escondidos, aparentemente impecáveis, mas fazem comércio com as pessoas: vendem o próximo. Judas deixou discípulos, discípulos do diabo. Judas era apegado ao dinheiro: quem demasiadamente ama o dinheiro, trai. Mas é traído pelo diabo, que é um mau pagador e deixa no desespero. E caba por enforcar-se.

Homilia de Missa na Casa Santa Marta, 08/04/20.

Façamos um exame de consciência e permitamos que a graça de Deus socorra nossa fraqueza e que, ao refletirmos sobre a enigmática figura de Judas, o Espírito Santo nos convença de nossos pecados, daquilo que precisamos enxergar e mudar. Que Deus jamais permita a nós entregar, abandonar ou vender nossos irmãos, fazendo-nos desapegar cada vez mais das riquezas e ilusões deste mundo, abraçando as riquezas celestes e assumindo com todas as forças nosso discipulado, até as últimas consequências.

Referências Bibliográficas

  • BÍBLIA DE JERUSALÉM. 3ª ed. São Paulo, Paulus, 2004.
  • CATECISMO DA IGREJA CATÓLICA, edição típica vaticana. São Paulo: Paulinas, Loyola, 2000.
  • CÓDIGO DE DIREITO CANÔNICO. São Paulo: Loyola, 2001.
  • PAULO VI. Declaração Nostra Aetate (Documentos do Concílio Ecumênico Vaticano II), 7a. ed. Paulus: São Paulo, 2014.
  • Vatican News. O Papa: Deus converta os Judas de hoje, mafiosos e agiotas que exploram necessitados. Disponível em <https://www.vaticannews.va/pt/papa/news/2020-04/papa-francisco-missa-santa-marta-coronavirus-converta-judas-hoje.html>. Acesso em 09/04/20.
  • ZILLES, Urbano. Evangelho de Judas. Teocomunicação Revista do Departamento da Teologia da PUCRS, Porto Alegre, ano 36, n. 154, dez. 2006, p. 905-916.

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