O PAPEL DA MÃE DE FAMÍLIA NA CEIA PASCAL JUDAICA – APONTAMENTOS PARA REFLEXÃO

O PAPEL DA MÃE DE FAMÍLIA NA CEIA PASCAL JUDAICA – APONTAMENTOS PARA REFLEXÃO

Aíla L. Pinheiro de Andrade, nj *

Antes de tudo, poderíamos nos perguntar sobre os motivos de uma reflexão sobre o papel da mãe de família em um retiro que tem por tema Maria e a Eucaristia. Primeiramente porque a ordem de Jesus aos seus seguidores“façam isso em meu memorial” deu-se na última ceia do Senhor a qual provavelmente foi uma celebração da páscoa judaica ou Séder de Pessach.

Os elementos indicativos de que a última ceia de Jesus com seus seguidores foi uma ceia pascal são os seguintes:

– “Veio o dia… no qual era preciso imolar a páscoa” (Lc 22,7);

– “Ide preparar a páscoa para que a comamos” (Lc 22,8);

– “E quando se fez noitinha” (Mt 26,20; Mc 14,17);

– “Aquele que imerge (o bocado) comigo na vasilha” (Mc 14,20);

– “Desejei ardentemente comer esta páscoa” (Lc 22,15);

– “O fruto da videira” (Lc 22,18);

– “E tendo cantado o hino saíram…” (Mt 26,30; Mc 14,26).

Esses versículos mencionam momentos da ceia pascal. A preparação do lugar e dos alimentos; alimentos tirados da mesma vasilha; o vinho chamado de “fruto da videira” em todas as orações da ceia e, por fim, o hino ou Sl 114 conhecido como Hallel.

Apesar desses fortes indícios de que a última ceia de Jesus foi um Séder de Pessach, os evangelhos não estão interessados em descrever os pormenores da refeição pascal, já que era conhecida de todos, pois era celebrada pelos judeus todos os anos e as primeiras comunidades cristãs eram formadas por judeus que aderiram a Jesus. O objetivo dos evangelistas é narrar os ensinamentos de Jesus por palavras e atos. Nesse sentido podemos indagar que detalhes ou elementos da ceia pascal não foram mencionados.

As ordenanças bíblicas de como se celebrar a páscoa judaica estão em Ex 12, 1-28. Ali se indica o dia e o mês em que deve se dar a celebração. Menciona a preparação a partir da separação do cordeiro ou cabrito, que deve ser de um ano, macho e sem defeito, o qual será imolado ao crepúsculo da tarde. Indica-se também que deverá ser assado ao forno e comido com pães sem fermento e ervas amargas. A refeição deve ser feita à noite e não se deixará nenhuma sobra do alimento. A celebração é em família, mas as famílias podem celebrar juntas de forma a consumir toda a carne. Se sobrar da carne deve ser queimada na manhã seguinte. Os comensais devem ter sandálias aos pés e cajado na mão como se fossem viajar às pressas. Há uma ordem, como estatuto perpétuo para que se celebre isto como memorial a cada ano. Também é ordenado que fosse ensinado aos filhos o significado dessa celebração.

Ao longo da história alguns elementos foram acrescentados. O cordeiro passou a ser imolado no Templo a partir de uma reforma religiosa[1], sendo que desde então não se poderia celebrar a páscoa a não ser em Jerusalém. Posteriormente aconteceu mais uma inovação por causa do crescente fluxo de peregrinos em Jerusalém, a imolação do cordeiro continuava sendo no Templo, mas a refeição tornava-se uma celebração doméstica por excelência[2].

Lucas menciona dois cálices de vinho (Lc 22,17 e 22,20) na última ceia de Jesus. O vinho não é citado na narrativa de Ex 12 e significa que foi acrescentado posteriormente conforme é testemunhado pela tradição judaica[3]. Tal acréscimo deu-se porque o Séder começava com a santificação, como acontecia em outras festas, portanto fez-se necessário uma taça de vinho sem a qual não se pronunciaria a bênção. Posteriormente outra taça passou a ser servida após a ação de graça como em outras ocasiões festivas. E, sendo o dia mais alegre do ano, duas novas taças foram acrescentadas para simbolizarem as quatro ações redentoras de Deus conforme Ex 6,6-7: libertar das cargas do Egito; livrar da servidão; resgatar com braço estendido e com grandes manifestações de julgamento; fazer de Israel seu povo e ser o Deus de Israel.

Sendo uma celebração doméstica por excelência, e para cumprir a ordem de Ex 12,26-27 que orienta responder aos filhos sobre o significado do rito, foram acrescentadas ao Sédervárias perguntas a serem feitas pelo filho mais novo, ou a pessoa mais jovem dentre os comensais. Essas perguntas que visam explicar o rito devem ser feitas antes da leitura de Ex 12 e devem ser respondidas pelo pai, elas supõem uma festa realizada em família.

Muitas orações e bênçãos também foram acrescentadas ao longo do tempo, a maioria delas está presente no ritual da missa. Interessa-nos agora a oração inicial porque deve ser feita pela mãe de família.

Para dar início à celebração da Páscoa a mãe acendia as velas enquanto pronunciava a bênção:

Bendito sejas tu, Adonai, nosso Deus, rei do universo, que nos santificastes pelos teus mandamentos e nos ordenastes benignamente esta festa das luzes.

O papel da mãe de família na ceia pascal está relacionado com o papel que ela realiza na família. Essa afirmação pode parecer estranha aos dias atuais e soa como suspeita de machismo. No entanto, tratava-se apenas de uma cultura com papéis bem definidos para homens, mulheres, genitores, filhos, ancião etc. Os papéis eram distintos para que se pudesse perceber o valor de cada pessoa e função dentro do corpo social e familiar.

O papel da mulher estava relacionado com a casa, o clã. Somente pela presença de uma esposa a casa de um homem é santificada, portanto sua tarefa principal era a santificação do lar.

A mulher representava a sabedoria de Deus que organiza o universo. Ela mantém a unidade na diversidade porque Deus lhe deu o dom de ver os mínimos detalhes. A mulher é chamada de Eva, awah em hebraico, pois participa do mistério da criação ao trazer a Vida (ay). A criação é separação/distinção, por isso é a mulher quem separa os seis dias de trabalho do dia de shabath (sábado).

Na tardinha do sexto dia, 18 minutos antes do por do sol, a mãe de família ou, na ausência dela, uma das filhas ou qualquer mulher que esteja presente, após cobrir a cabeça, deve acender duas velas e recitar a bênção de Erev Shabath. Durante a primeira parte da bênção ela deve movimentar as mãos em torno das velas num movimento ondulante. A segunda parte da bênção deve ser pronunciada com as mãos cobrindo os olhos. Após dizer “Amém” deve descobrir os olhos e olhar para as velas. Isso faz lembrar o início da criação quando “Deus disse:‘haja luz e houve luz’” (Gn 1,3). A partir daí começa o sábado, o dia santificado que santifica a vida dando-lhe sentido. A Páscoa judaica é sinal de vida plena, digna, liberta, é uma nova criação. Essa dimensão aparece nos gestos e palavras da mulher e na oração que dá início à Páscoa.

Sendo a refeição pascal uma festa essencialmente familiar, mesmo quando a imolação dos cordeiros foi centralizada no Templo, e sendo a última ceia de Jesus uma refeição pascal, o Senhor a teria celebrado exclusivamente com os Doze? Estando os apóstolos em Jerusalém para celebrar a Páscoa, onde estariam suas esposas e filhos senão em Jerusalém também? Ou as famílias dos apóstolos não teriam celebrado a Páscoa aquele ano? Os evangelhos mencionam a ida da família de Jesus a Jerusalém por ocasião da Páscoa. Teriam os parentes de Jesus deixado de celebrar a Páscoa aquele ano? Ou Jesus não teria dado importância à celebração familiar justamente naquele ano em que celebrou a sua última ceia? Como indica a Hagadá bíblica da Páscoa (Ex 12), várias famílias podiam se unir para celebrar juntas, isso era louvável porque nada do cordeiro podia sobrar para o dia seguinte (v.4 e 10). Haveria algum motivo que impedisse as famílias dos apóstolos, e de Jesus, de se unirem para celebrar a Páscoa aquele ano?

Louvemos a Jesus Cristo que ordenou à Igreja reunida na última ceia a que celebrasse o memorial de sua Paixão e Ressurreição, ordem que será cumprida até que ele venha.

 

ישוע אתא מרן

(Maran atha Yeshua)

Vem, Senhor Jesus!(Ap 22,20)

 

* Aíla L. Pinheiro de Andrade é graduada em Filosofia pela Universidade Estadual do Ceará e em Teologia pela Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia (Faje), onde também cursou mestrado e doutorado em Teologia Bíblica e lecionou por alguns anos. Atualmente leciona na Faculdade Católica de Fortaleza e em diversas outras faculdades de Teologia e centros de formação pastoral.


[1]A partir do ano621 a.C. na reforma de Josias (2Rs 23,22), conforme alguns estudiosos, ou na de Edras-Neemias em515 a.C. (Esd 6,19-22), conforme outros.

[2]GIRAUDO, Cesare. Num só Corpo. Tratado mistagógico sobre a eucaristia, São Paulo: Loyola, 2003, p. 96.

[3]A HAGADÁ DE PESSACH. São Paulo: B’nai b’rith, 1977. MISHNÁ, Berachoth VI.

 

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