A santificação do sábado é considerado um dogma, isto é, uma verdade de fé para a religião judaica, e seu valor espiritual encontra-se nas primeiras páginas da Bíblia: “Deus concluiu no sétimo dia a obra que fizera e no sétimo dia descansou, depois de toda obra que fizera. Deus abençoou o sétimo dia e o santificou, pois nele descansou depois de toda a obra de criação” (Gn 2,2-3), por isso tornou-se o terceiro mandamento. Na Sagrada Escritura, quanto mais antiga uma lei, maior sua validade e autoridade, então o sábado foi situado numa posição elevada: a lei vem de Moisés (cf. Ex 20), a circuncisão de Abraão (cf. Gn 17), mas o sábado vem da criação. O próprio livro do Êxodo o justifica relacionando-o à obra criadora de Deus:
Lembra-te do dia do sábado para santificá-lo. Trabalharás durante seis dias, e farás toda a tua obra. O sétimo dia, porém, é o sábado de Iahweh teu Deus. Não farás nenhum trabalho, nem tu, nem teu filho, nem tua filha, nem teu escravo, nem tua escrava, nem teu animal, nem o estrangeiro que está em tuas portas. Porque em seis dias Iahweh fez o céu, a terra, o mar e tudo o que eles contém, mas repousou no sétimo dia; por isso Iahweh abençoou o dia do sábado e o consagrou.
Êxodo 20,8-11.
Foi somente no Sinai que esta ideia começou a ganhar força, tornando-se sinal da Aliança e um dos aspectos mais característicos do judaísmo. Em hebraico, shabbat (שַׁבָּת) traz o radical de “cessar, descansar”. Mas não é qualquer repouso, vai muito além de uma pausa do homem, da terra e do universo. Veja que o termo é sempre associado a um outro: santidade. Portanto, o sábado revela um repouso sagrado, abençoado, santificado. Trata-se não apenas de uma dimensão meramente cúltica, mas também de uma preocupação humanitária (cf. Ex 23,12; Dt 5,14), se o próprio Deus repousou, o homem também o deve fazer, pois o sábado é uma instituição divina. A ideia já denota a realeza e soberania de cada pessoa, a abolição de toda espécie de distinção entre senhor e escravo, rico e pobre, sucesso e falência, dando ao ser humano independência suprema em relação à civilização e à sociedade e, ao mesmo tempo, “nós devemos abster-nos de todo trabalho criativo no sábado para demonstrar que não somos os donos deste mundo, mas somente os servidores de Deus para cumprir Seus mandamentos” (TORÁ, 2001, p. 4-5).
Olhando a Bíblia por fora, já foi comprovado pela arqueologia que a região onde sua história começou a ser narrada (Ur, Harran) abrigava, bem antes de Abraão, um culto à lua, diferentemente do Egito e Roma, por exemplo, que preferiam cultuar o Deus Sol. Portanto, o povo mesopotâmico era uma civilização de religião lunar. Num tempo onde não se tinha previsões meteorológicas e a sobrevivência dependia muito mais da água, a lua era, além de divindade, uma espécie de calendário, “GPS”, bússola. Suas quatro fases no ciclo de 28 dias (nova, crescente, cheia, minguante) ajudavam o povo nômade e sedentário a prever a chuva, o período para plantio e colheita, a força das marés, as cheias dos rios e até o ciclo menstrual das mulheres. O povo de Deus foi, com o tempo, purificando as festas pagãs existentes direcionadas à lua, as mais importantes eram as festas da lua nova (cf. 1Sm 20,5-18; Is 1,13-14; Os 2,13; Am 8,5; 2Rs 4,23) e as da lua cheia, onde era celebrada a páscoa (cf. Ex 12,6), “por isso, no dia da mudança de fase da lua, o mundo parava, esperando a decisão do céu. Todos os anos celebrava-se a passagem do ano como uma nova criação. Assim, proporcionalmente, cada semana era uma nova criação” (TILLESSE, 1984, p. 14), mas independente das festas anuais, o sábado, obedecendo as fases da lua, permanecia um dia consagrado ao repouso. Cada sábado é uma páscoa, assim também acontece para os cristãos no domingo.
Um dos fatos mais importantes da história da religião foi a transformação das festas agrícolas em comemorações de eventos históricos. As festas dos antigos povos estavam intimamente ligadas a estações da natureza. Eles comemoravam o que acontecia na vida da natureza nas respectivas estações. Então, o valor do dia festivo foi determinado pelas coisas que natureza produziu ou não produziu. No judaísmo, acabou, originalmente um festival de primavera, e tornou-se uma celebração do êxodo do Egito; A festa das Semanas, um antigo festival do fim de colheita do trigo (hag ha-kazir, Êxodo 23,16; 34,22), tornou-se a celebração do dia em que a Torá foi dada no Sinai; a Festa dos Tendas, um antigo festival de vindima (hag ha-asif, Ex 23,16), celebra a habitação dos israelitas em tendas durante sua estada no deserto (Levítico 23, 42ss). Para Israel, os eventos únicos da época histórica eram espiritualmente mais significativas do que os processos repetitivos do ciclo da natureza, embora o sustento físico dependesse do último. Enquanto as divindades de outros povos estavam associadas com lugares ou coisas, o Deus de Israel era o Deus de eventos: o Redentor da escravidão, o Revelador da Torá, manifestando-se em eventos da história ao invés de coisas ou lugares. Assim, a fé no incorpóreo, no inimaginável, nasceu.
HESCHEL, “The Sabbath”, 1998, p. 7-8.
Vê-se aqui claramente a importância que se dava às vigílias, como expectativa de uma nova criação. Assim, a cultura e liturgia cristã tem as suas fontes, basta lembrar que as solenidades mais importantes de nosso calendário, com destaque para páscoa e natal, são celebradas a partir do cair da tarde do dia anterior, para nos transpor ao tempo. No entender dos antigos, o dia não iniciava na manhã, mas sim ao cair da tarde: “houve uma tarde e uma manhã” (Gn 1,5.8.13.19.23.31). O sinal físico norteador é o surgimento da primeira estrela no céu, a estrela “vespertina”, que hoje sabemos tratar do planeta Vênus, que aqui no Brasil já pode ser notado no céu por volta das 17h ou 17h30, daí a palavra e conceito de “véspera”. Daqui se explica o por que da liturgia católica já poder antecipar o domingo para o sábado à tarde. Ainda com relação ao sábado, na perspectiva católica acerca de sua reinterpretação, lemos:
O domingo distingue-se expressamente do sábado, ao qual sucede cronologicamente, em cada semana, e cuja prescrição ritual substitui, para os cristãos. O domingo realiza plenamente, na Páscoa de Cristo, a verdade espiritual do sábado judaico e anuncia o descanso eterno do homem, em Deus. Porque o culto da Lei preparava para o mistério de Cristo e o que nela se praticava era figura de algum aspecto relativo a Cristo.
Catecismo da Igreja Católica, n. 2175
O sentido ritual e litúrgico do terceiro mandamento (santificação do sábado) foi reinterpretado pela tradição cristã a partir do grande evento da Ressurreição de Cristo que, segundo São João, se deu no primeiro dia da semana (cf. Jo 20,15), o que depois receberia o nome latino de dominica, “dia do Senhor”. Sabemos do entrave de Jesus com os fariseus, sacerdotes e doutores da lei de seu tempo, pois o mesmo era “flagrado” realizando curas e obras em dia de sábado, às vezes até propositalmente, como ocorreu com um hidrópico (mão atrofiada) em Lucas 14,1-6. Para Jesus não é ilícito fazer o bem em dia de sábado, por isso ele mesmo assumiu para si a soberania a uma lei puramente humana: “o sábado foi feito para o homem, e não o homem para o sábado; de modo que o Filho do Homem é senhor até do sábado” (Mc 2,27-28).
Assim sendo, Jesus não fazia tais gestos para polemizar com as autoridades religiosas, mas para afirmar a sacralidade da misericórdia divina que supera o legalismo superficial de certos pensamentos e posturas religiosas de seu tempo, por isso citou o ocorrido com Davi e seus companheiros em 1 Samuel 21,2-7, numa situação de combate onde só havia pães da oblação (consagrados) para comer, gentilmente ofertados pelo sacerdote Aquimelec. Portanto, para Jesus, realizar o bem é também um trabalho sagrado; o sábado torna-se prefiguração de sua ressurreição, de um repouso espiritual e eterno do homem em Deus. Em outras palavras, nosso domingo é a realização do sábado. Não é distinção, mas plenificação, aperfeiçoamento.
A celebração do domingo é o cumprimento da prescrição moral, naturalmente inscrita no coração do homem, de «prestar a Deus um culto exterior, visível, público e regular, sob o signo da sua bondade universal para com os homens». O culto dominical cumpre o preceito moral da Antiga Aliança, cujo ritmo e espírito retoma, ao celebrar em cada semana o Criador e o Redentor do seu povo.
Catecismo da Igreja Católica, n. 2176
Seja o shabbat para os judeus, ou o dominica para os cristãos, esse descanso existe para o ser humano contemplar as obras da criação, santificação e redenção, aquilo que Deus contemplou e viu que “era bom”, para valorizarmos as bênçãos de Deus, lembrarmos que a criação de Deus (incluindo o ser humano) não é uma “coisa”. Aliás, nem existe o equivalente para a ideia de “coisa” no hebraico bíblico, notou o rabino Heschel (1998, p. 7) em sua obra The Sabbath (O Sábado), indagando: “qual foi o primeiro objeto sagrado na história do mundo? Foi uma montanha? Um altar? (…) É, de fato, uma ocasião única em que a distinta palavra qadosh [santo] é usada pela primeira vez: no Livro de Gênesis, no final da história da criação. Quão extremamente significativo é o fato de ser aplicado ao momento: “E Deus abençoou o sétimo dia e fez-lo santo“” (HESCHEL, 1998, p. 9). O homem moderno vive extasiado à exploração e conquista do espaço, mas infelizmente tem se mostrado ineficiente em evitar a própria ruína, tem ignorado aquilo que está à sua volta, diante de seus olhos, ele tem esquecido que ser é mais importante e urgente que o ter. A Bíblia está mais interessada pela história do que pela geografia, ela concebe o mundo a partir dessa dimensão. Por isso, o shabbat pode ser concebido como uma santificação ou “arquitetura do tempo” e, o domingo cristão, como atualização da salvação operada em Cristo hadois mil anos, um “teatro vivo” do mistério da cruz e ressurreição. Celebremos a santidade do e no tempo, onde Deus pode ser sempre bem sucedido.
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Referências Bibliográficas
- BÍBLIA DE JERUSALÉM. 3ª ed. São Paulo: Paulinas, 2004.
- CATECISMO DA IGREJA CATÓLICA, edição típica vaticana. São Paulo: Paulinas, Loyola, 2000.
- HESCHEL, Abraham Joshua. Deus em busca do Homem. São Paulo: Edições Paulinas, 1975, p. 522.
- ______. The Sabbath: Its Meaning for Modern Men. 26ª ed. New York: Farrar, Straus and Giroux, 1998 (tradução nossa).
- TILLESSE, Pe. Caetano Minette de. Hino da Criação. Revista Bíblica Brasileira – RBB. Ano I, n. 1, Abr. 1984, pp. 13-14.
- TORÁ – A LEI DE MOISÉS. São Paulo: Sêfer, 2001, p. 4-5, nota 3.