É NECESSÁRIO CELEBRAR A RECONCILIAÇÃO
Por Ir. Aíla Luzia P. Andrade, NJ*
(originalmente retirado da revista Vida Pastoral, Paulus )
I. INTRODUÇÃO GERAL
Nas leituras de hoje há um convite para a celebração e para a reconciliação. Nesse convite está implícita uma necessidade de mudarmos nossa visão sobre Deus e, consequentemente, nossa relação com ele. Deus não é como o faraó do Egito e nós não devemos manter com ele uma relação interesseira, mas de amor gratuito e filial. Somente a partir desse novo olhar para Deus é que se poderá compreender o modo como ele atua na história. Enquanto pensarmos que somos justos, faremos um mau julgamento das pessoas que não seguem nossos padrões religiosos. Agindo assim, seremos incapazes de sentir a necessidade de reconciliação com Deus e com o próximo.
II. COMENTÁRIO DOS TEXTOS BÍBLICOS
1. Evangelho (Lc 15,1-3.11-32): Celebraram o retorno do filho à casa paterna
Em Lc 15 está a chave de interpretação da obra de Jesus: Deus sai à busca do perdido. Os vv. 1-3, que são introdutórios, apresentam o contexto e a motivação das parábolas. Os cobradores de impostos e os pecadores se aproximam de Jesus para ouvi-lo, enquanto os fariseus e os escribas criticam a atitude de Jesus, que toma refeição com os pecadores. Sabe-se que participar da mesma mesa significa comungar das idéias e do estilo de vida. Ao partilhar a refeição com os pecadores, Jesus põe em jogo sua reputação de homem de Deus. Mas, as parábolas que Jesus contará irão contrapor-se às murmurações dos seus adversários, mostrando a ação do Pai que se reflete na atuação de Jesus.
O texto se divide em duas cenas: o filho mais jovem (15,11-24) e o filho mais velho (15,25-32). Estas são unidas pela ação do pai, o protagonista de todo o relato. O ponto central é o encontro com o pai, comentado pelo refrão que sela toda a cena: “Este meu filho estava morto e tornou a viver, estava perdido e foi encontrado” (15,24).
Os vv. 11-16 narram a situação do filho mais novo. Sua emancipação e o desperdício de sua herança. A herança não significa exatamente bens materiais, mas tudo aquilo que sustenta a vida. O filho mais novo se distancia, rompe com o pai; vai para uma terra longínqua, dissipa os bens e, finalmente, chega a uma situação desumana, pois cuidar dos porcos é o nível mais baixo que um judeu poderia descer em sua dignidade. Fato mais agravante é não poder alimentar-se sequer da ração destinada a esses animais.
Os vv. 17-21 narram o processo de retorno à casa paterna. Inicialmente com a tomada de consciência sobre a vida digna que poderia ter na casa do pai como empregado. A lembrança da fartura é contraposta a sua situação de fome e miséria. Num primeiro momento, é a fome que o impele a voltar para casa. Mas sabendo de seu erro, reconhece que não é digno de ser acolhido como filho. Mas recordando-se da bondade do pai, que não maltratava seus empregados, retorna em busca de pão. O pai, ao avistá-lo, corre-lhe ao encontro, movido de compaixão, envolve-o num abraço e o cobre de beijos, ou seja, o acolhe com filho amado. Ordena aos empregados que tragam roupa nova, jóia e sandália, para que o filho seja restituído em sua dignidade filial. Em seguida, exige que se celebre o retorno à vida. É a alegria pelo pecador que foi convertido, pelo perdido que foi encontrado. Aqui se justifica a atitude de Jesus em partilhar a refeição com os pecadores.
Nos vv. 25-32 entra em cena o filho mais velho. Este se ressente porque o pai acolheu o filho mais novo sem reservas. O ressentimento o leva a manter-se fora, a não comungar com a atitude paterna e, até o critica por isso. O pai sai ao encontro desse filho também e suplica-lhe que entre, pois é necessário alegrar-se e festejar o retorno do filho mais jovem. Contudo, o filho mais velho está enciumado porque não mantém com o pai uma relação afetiva, mas sim serviçal.
A narrativa termina com um convite para celebrar o retorno do pecador arrependido. Jesus mostra que o Pai sai à busca dos perdidos e festeja porque são resgatados. Essa era também a atitude de Jesus e deve ser a nossa.
2. I Leitura (Js 5,9a.10-12): Reconciliaram-se com o Senhor celebrando a Páscoa
Embora o Senhor tenha sido sempre fiel, a aliança ficou parcialmente interrompida por causa da desobediência daqueles que saíram do Egito. Conforme o versículo 9, a entrada na terra prometida faz com que Deus remova definitivamente a vergonha do povo. Com a frase “opróbrio dos egípcios”, os mestres judeus interpretam que os egípcios escarneciam dos hebreus peregrinos no deserto, duvidando que Deus lhes cumprisse a promessa.
A Páscoa não havia sido celebrada no deserto. Agora, uma nova geração de hebreus reconcilia-se com Deus, retomando a aliança e o projeto divino. A celebração da Páscoa na terra prometida é renovação da aliança e re-inaugura o processo histórico salvífico para o povo de Deus. Na festa da Páscoa, os hebreus celebram, principalmente, a gratuidade do Senhor que os amou e os libertou da escravidão, os alimentou e lhes deu uma terra onde pudessem viver com dignidade.
Portanto, o texto enfatiza esse novo começo, uma nova etapa na vida e na história de Israel que implicava em uma ruptura com a desobediência do deserto. Na celebração da Páscoa se atualiza, ritualmente, a libertação da escravidão, mas, além disso, serve para fazer memória da história, aprender com os erros e solidificar a fidelidade a Deus.
Além de enfatizar a reconciliação na celebração da Páscoa, o texto destaca que os hebreus comeram do produto da terra e que depois disso o maná cessou (vv.11b e 12a). Esse detalhe mostra uma mudança. O povo passou do maná providenciado durante a peregrinação no deserto, para o alimento que era fruto da terra. Assim como o maná, o fruto da terra é símbolo da provisão generosa de Deus, agora de uma forma diferente porque a etapa histórica também é diferente.
Os hebreus estavam na terra sobre a qual Deus havia dito que manava leite e mel e a palavra de Deus se cumpria agora que provavam dos frutos dessa terra fértil, onde poderiam viver com dignidade. O povo confirmava a generosidade do Senhor e o total cumprimento de suas promessas.
A posse da terra prometida exigia um povo renovado, distinto do que estava no Egito, com um estilo alternativo de viver, como uma nova humanidade. Era a consolidação das relações entre Deus e seu povo e a afirmação da identidade de povo de Deus. Por isso era necessário celebrar.
3. II Leitura (2Cor 5,17-21): Somos embaixadores da reconciliação
A reconciliação descrita nesse capítulo exige uma vida nova e diferente. Os vv. 16–21 destacam que o começo dessa vida nova é marcado pelo modo como julgamos as pessoas. A sociedade atual avalia as pessoas pela aparência, cultura, inteligência, poses e por suas habilidades em
manipular as circunstâncias. No âmbito religioso, tem-se a tendência de julgar os menos engajados ou desengajados da igreja como “pessoas do mundo” e de má conduta.
Paulo declara enfaticamente que a perspectiva através da qual o cristão ver todas as coisas deve ser a mesma ótica de Jesus. O apóstolo é credenciado para afirmar isso porque houve um tempo em que ele julgou erroneamente os seguidores do Messias.
Os vv. 17-19 destacam que em Cristo todas as coisas são velhas e agora tudo é novo e isso acontece por causa da graça de Deus que reconciliou o mundo inteiro consigo. Estar “em Cristo” (v. 17a) representa uma relação íntima, e Paulo a expressa com o termo “nova criatura” (v. 17b). Falar de nova criação era a maneira usual com que se descrevia um prosélito judeu (alguém que se convertia ao judaísmo). Esse conceito adquiriu um sentido mais profundo. Os cristãos são novas criaturas porque “em Cristo” são pessoas renascidas com atitudes novas através de um espírito novo.
Por Cristo, Deus criou uma nova humanidade; tudo vem de Deus, ele é o autor da salvação. O impacto da obra redentora de Deus é a reconciliação (v. 18). O verdadeiro significado da reconciliação é que Deus tomou a iniciativa de perdoar o ser humano por seus crimes, suas faltas, sua hostilidade, sua rebelião e seu pecado. A iniciativa foi sempre tomada por Deus.
Na reconciliação o perdão é essencial. Deus não considerou nossas transgressões (v. 19b), mas tomou a iniciativa de perdoar. Quando alguém experimenta a reconciliação com Deus é natural que queira reconciliar-se com seu semelhante. Além disso, Deus “nos deu o ministério da reconciliação” (v. 18c). Somos portadores e agentes com a obrigação de realizar a reconciliação entre a humanidade e Deus, conseqüentemente, a reconciliação se torna possível e necessária entre os seres humanos.
Deus pôs em nossas mãos a palavra de reconciliação e espera que sejamos seus mensageiros (v. 19c). A reconciliação não é iniciativa nossa; mas é algo que Deus realizou através de Cristo (v. 20). O Senhor colocou de lado tudo aquilo que significado distanciamento, de forma a proclamar a paz entre o Criador e a criatura. O evangelho é boa notícia, a reconciliação realizada por Deus merece e deve ser proclamada à humanidade inteira.
Paulo nos leva ao ápice do ministério cristão com a declaração de que “somos embaixadores de Cristo” (v. 20a); o papel do embaixador é singular porque está credenciado pela autoridade que o enviou. Deus nos delega como embaixadores para a obra reconciliadora.
III. PISTAS PARA REFLEXÃO
Enfatizar que nossa condição de cristãos não nos identifica com o filho mais velho cumpridor dos mandamentos, mas sim com o filho pecador e necessitado de perdão. Procurar fazer com que cada pessoa da assembléia se identifique com o filho mais novo, porque somente assim será possível celebrar a nossa libertação definitiva do pecado e da morte na Páscoa do Senhor.
* Aíla L. Pinheiro de Andrade é membro do Instituto Religioso Nova Jerusalém. Graduada em Filosofia pela Universidade Estadual do Ceará e em Teologia pela Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia (FAJE), onde também cursou mestrado e doutorado em Teologia Bíblica. Leciona na Faculdade Católica de Fortaleza e em diversas outras faculdades de Teologia e centros de formação pastoral. (ailapinheiro@bol.com.br)