PASTORAL DOS SURDOS: UM NOVO PENTECOSTES NA CONSTRUÇÃO DO REINO DE DEUS

PASTORAL DOS SURDOS: UM NOVO PENTECOSTES NA CONSTRUÇÃO DO REINO DE DEUS

Por Antonio Cid Freitas Barros*

No ano de 1950, a Pastoral dos Surdos foi oficializada no Brasil a partir dos esforços do Padre Eugênnio Oates e do Monsenhor Vicente Penido Burnier. Desde então, a Pastoral vem se tornando cada vez mais um instrumento de evangelização da comunidade surda por todo o país. Toda essa conquista não se deu de qualquer forma, mas fruto do trabalho de missionários e congregações religiosas que desde o início do século XIX dedicaram-se ao trabalho de evangelização da pessoa surda no Brasil.

Apesar de mais de cinco séculos de evangelização no Brasil, a evangelização da comunidade surda ainda há muito que se desenvolver, sobretudo para superar as barreiras do preconceito e da discriminação da sociedade. Assim como muitas outras identidades culturais (indígenas, negros) no Brasil, a comunidade surda também é vítima da intolerância da maioria ouvintista. Mesmo na Igreja, nem sempre os Surdos têm facilmente o seu espaço garantido, pois até mesmo aos fiéis e pastores religiosos faltam a consciência de reconhecer o sujeito Surdo como diferente, porém, filho do mesmo Pai e herdeiro do mesmo Reino pregado e anunciado por Jesus Cristo.

O diferencial da cultura surda se encontra na modalidade de sua língua: a língua de sinais, ou seja, uma linguagem espaço-visual, em que a expressão corporal, sobretudo das mãos, traduz seu sentimento e pensamento e a visão é responsável por fazer a leitura da realidade circundante. No Brasil, os Surdos se comunicam por sua língua garantida pela lei federal 10.436 que oficializou a LIBRAS, Língua Brasileira de Sinais, conquistada pela comunidade surda em 2002.

Apesar da conquista da língua de sinais dos Surdos em vários países, na raiz dessa história se encontra uma realidade muito dolorosa, pois por muitos anos os Surdos foram vistos como anormais e doentes. Por isso, eles eram rejeitados pela sociedade e posteriormente eram isolados nos asilos para que pudessem ser protegidos, pois não se acreditava que pudessem ter uma educação em função da sua “anormalidade”.

Na visão clínica, a preocupação com os Surdos deveria ser apenas pela necessidade de domesticá-lo para o convívio familiar, pois essa visão via o Surdo simplesmente como um paciente ou doente das orelhas e por isso precisava ser tratado a todo custo, com exercícios terapêuticos auditivos, por exemplo. Assim, essa visão categoriza os sujeitos Surdos através de graus de surdez e não pelas suas identidades culturais.

Na idade média, segundo o historiador Carlos Skliar, os surdos eram vistos como não-humanos, a partir de uma visão até mesma religiosa, pois para a Igreja era difícil catequizá-los por conta do impasse linguístico e, dessa forma, não poderiam ser considerados dignos à participação dos sacramentos. Porém, a partir da preocupação da salvação dessas almas e o advento do pensamento da surdez como identidade cultural, desperta também o interesse para a reflexão de cunho filosófico que teve como precursor no processo educacional o abade francês Charles-Michel de I’Épée, já na modernidade por volta de 1760, fundador da primeira escola pública para Surdos. A partir de então, foi possível o começo de uma formação de um corpo para língua de sinais. I’Épée, criou também o alfabeto manual que beneficiava a comunicação entre Surdos e ouvintes. Dessa forma, podemos perceber também uma estreita relação da Igreja e as lutas surdas.

Hoje, com todas as conquistas da comunidade surda, a Pastoral dos Surdos visa romper os desafios e abraçar os sinais do Reino na Igreja no Brasil e ser a ação da Igreja que tem como princípio e fundamento a própria ação do Cristo relatada no evangelho de Marcos:

E entrou de novo na sinagoga, e estava ali um homem com uma das mãos atrofiada. E o observavam para ver se o curaria no sábado, para o acusarem. Ele disse ao homem da mão atrofiada: “Levanta-te e vem aqui para o meio”. (Mc 3, 1-3)

Assim, a mesma dignidade dada por Jesus é agora assumida pela Igreja, que como presença e testemunho do Cristo, quer continuar sua missão, levando a Boa-Nova a toda a criatura, ou seja, acolhendo a todos independente de sua diferença, pois o Reino de Deus é para todos. As mesmas palavras pronunciadas por Jesus são também agora pronunciadas por todos aqueles que se dedicam na evangelização dos Surdos: “Levanta-te e vem aqui para o meio”. Dessa forma, a Pastoral dos Surdos quer atualizar a missão de Jesus ao anunciar o Reino Deus como um projeto de vida e vida em abundância, de justiça e solidariedade, rompendo com os preconceitos e discriminações. Por isso, queremos ver Jesus nas mãos dos Surdos e intérpretes que se tornam instrumentos de Deus. Queremos ser, como diz na canção de Frei Jurandir O.F.M: “mãos que falam de Deus”.

Jesus, ao encerrar sua missão aqui na Terra e se despedir de seus discípulos, Ele envia os mesmos com uma recomendação: “Ide por todo mundo, proclamai o Evangelho a toda criatura” (Mc 16,15). No pedido de Cristo está o desejo que o Reino de Deus seja conhecido por todos e que todos encontrem a salvação. Para isso, faz-se necessário que a Boa-Nova seja anunciada sem distinção, que seja sinal de verdadeiro amor que inclui todos na comunidade dos filhos de Deus. Assim, Cristo disse que um dos sinais que acompanharia seus discípulos seria o pregar em novas línguas. Dessa forma, a língua já não seria uma barreira que impediria o conhecimento do plano salvífico de Deus.

Em Pentecoste, quando se encontravam reunidos os discípulos, o Espírito Santo desce sobre eles e todos começam a anunciar em diferentes línguas conforme o Espírito lhes concedia:

Achavam-se então em Jerusalém judeus piedosos, vindos de todas as nações que há debaixo do céu. Com o ruído que se produziu, a multidão acorreu e ficou perplexa, pois cada qual os ouvia falar em seu próprio idioma. Estupefatos e surpresos, diziam: “Não são, acaso, galileus todos esses que falam? Como é, pois, que os ouvimos falar, cada um de nós, no próprio idioma em que nascemos? Partos, medos, elamitas; habitantes da Mesopotâmia, da Judeia e da Capadócia, do Ponto e da Ásia, da Frígia e da Panfília, do Egito e das regiões da Líbia próximas de Cirene; romanos que aqui residem; tanto judeus como prosélitos, cretenses e árabes, nós os ouvimos anunciar em nossas próprias línguas as maravilhas de Deus!” Estavam todos estupefatos. (At 2,5-12)

Assim, o apelo dos Surdos ao fundar uma Pastoral que os acolham em sua identidade espaço-visual, com certeza vai ao encontro da alegria daqueles que ficaram estupefatos ao ouvirem as maravilhas de Deus em sua própria língua. Por isso, sinalizam eles também: “queremos ver o anúncio das maravilhas de Deus em nossa própria língua”.

Portanto, sendo a Igreja a responsável por pastorear o rebanho de Cristo aqui na Terra, faz-se necessário que ela exerça a sua missão de forma que todos sejam assistidos conforme as necessidades para que assim conheçam a Palavra de Deus e possam crer e testemunhar os sinais do Reino de Deus já aqui na Terra. Também, como o próprio Cristo falou, possam realizar milagres ainda maiores através da fé de cada um. Essa missão, com certeza tem sido exercida a cada dia como que um novo Pentecostes através do trabalho de uma Pastoral bem específica: a Pastoral dos Surdos.

REFERÊNCIAS

 

BÍBLIA. Português. Bíblia de Jerusalém. 3. ed. São Paulo: Paulus, 2004.

CONFERÊNCIA NACIONAL DOS BISPOS DO BRASIL. Pastoral dos Surdos: rompe desafios e abraça os sinais do Reino na Igreja do Brasil. São Paulo: Paulinas, 2006.

GESSER, Audrei. LIBRAS? Que língua é essa? Crenças e preconceitos em torno da língua de sinais e da realidade surda. São Paulo: Parábola Editorial, 2011.

LOPES, Maura Corcini. Surdez & Educação. Belo Horizonte, Ed. Autêntica, 2007.

SKLlAR, Carlos. Experiência de Bilingüismo en Argentina. Trabalho apresentado no II Encuentro Nacional de Especialistas en Ia Educación dei Sordo. Merida-Venezuela, 1990.

_______________, Carlos (Org.). A surdez: um olhar sobre as diferenças. Porto Alegre: Mediação, 1998.

*Acadêmico de Filosofia pela Universidade Estadual do Ceará – UECE. É integrante (ouvinte) da Pastoral dos Surdos da Arquidiocese de Fortaleza (cid.barros@hotmail.com)

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