Por: Ir. Pe. Carlos César, NJ*
“Afasta de mim este cálice…!” (Mc 14,36)
Introdução
Como entender tal afirmação dita por Jesus, Ele que tantas vezes é chamado no Novo Testamento de Senhor (Fl 2,11), Mestre (Jo 1,38), Pastor (Jo 10,11), Filho de Deus (Mt 15,39), Filho do Homem (Mc 2,10), Messias (=Cristo), entre tantos outros títulos não atribuídos a qualquer pessoa? É, talvez seja compreensível tal questionamento para quem queira fazer uma leitura de sua vida no direcionamento único à sua divindade, deixando de levar em consideração o que seja algo fundamental à fé cristã, a saber, reconhecê-lo como verdadeiramente Deus e verdadeiramente Homem. Não é, portanto, de se estranhar tal experiência de sofrimento nesta vida tão divina, mas também tão humana.
Jesus e o sofrimento
Considerando, pois, o sofrimento como uma realidade própria do ser humano, não poderia ser diferente na vida de Jesus, afinal ninguém mais que ele assumiu tão plenamente a humanidade como sentido para si próprio e desígnio de Deus. Não que ele tenha optado por sofrer, evidentemente, mas que assumiu mesmo o sofrimento para que sua missão fosse cumprida na fidelidade ao Pai[1] e solidariedade a toda a humanidade.
Contexto literário
É imprescindível que não percamos de vista o contexto literário do Evangelho de Marcos onde Jesus faz tal afirmação. Situamo-nos então na narração da paixão (Mc 14,32-36; cf. também Mt 26, 36-46; Lc 22,40-46). No versículo 36 encontramos: “Abbá, Pai, tudo te é possível, afasta de mim este cálice! Entretanto, não o que eu quero, mas o que tu queres!”. Tanto em Marcos como nos demais evangelhos, situamo-nos no contexto narrativo que nos faz lançar o olhar para o caminho que leva Jesus ao ápice de sua missão salvífico/redentora. Momento em que Jesus envolvido por um sentimento de profunda angústia, expressa muito explicitamente sua humanidade e, desta forma, ao invés de aparentar fracasso explicita sentimentos humanos profundos em uma situação tão determinante para si e pra toda a humanidade. Vivia aquele momento como conseqüência de toda sua vida e o assume como obediência fiel ao Pai rumo ao seu pleno sentido.
O fato de Jesus mencionar já no início do versículo 36 a invocação do seu Pai querido, o Abbá[2], já nos revela muito. O Pai é o princípio e fundamento da vida e missão de Jesus; seu falar e seu agir sempre partiram e culminaram, ganhando seu sentido, na vontade de Deus[3]. Como sempre, naquela circunstância, Jesus expunha sua certeza da presença e comunhão do Pai. E era exatamente essa confiança e entrega filial que firmava a sua missão tantas vezes confrontada e não entendida. Mas nada o fazia voltar atrás, ainda que em meio à mais angustiante e dolorosa situação, como no caso do Getsêmani. Certamente a vontade, o auxílio e a presença do Pai consigo, era a maior motivação de superar qualquer que fosse o sofrimento conseqüente de sua missão.
Ainda que, como temos dito, o sofrimento seja algo muito presente na vida humana, em sua normalidade o ser humano não o aprecia por ele mesmo, no entanto como não pode evitá-lo – pelo menos em muitas ocasiões – , porém precisa encará-lo com maturidade e dar-lhe um sentido, assim como aconteceu com Jesus. Ele não buscava problemas e sofrimentos, mas a coerência de sua missão o fazia encontrá-los, e por isso não poderia recuar diante dos mesmos, mas lhes dava um sentido por uma causa extremamente nobre, a implantação do Reino de Deus, o outro pólo de sentido da missão de Jesus diante do primeiro que é a fidelidade ao Pai.
A experiência no Getsêmani, na vida de Jesus foi profundamente exigente, decisiva e culminante. Visto que para chegar ali toda uma opção já havia sido tomada, o que englobava a fidelidade ao Pai, o perdão a todos os pecadores (Lc 15,1.32), o resgate da dignidade de tantas pessoas marginalizadas, a conscientização do amor com que todos eram amados por Deus, enfim, a concretização do Reino de Deus em meio ao mundo.
“Afasta de mim este cálice!” Disse Jesus naquele momento determinante de sua vida. Mas porque era determinante, termina sua palavra com a outra afirmação: “Entretanto, não o que eu quero, mas o que tu queres!”. Fica-nos claro com isso que diante de um plano de salvação tão fielmente vivido, não mais podia voltar atrás. Ainda que nem tudo estivesse consumado, como dirá no memento da crucifixão (cf. Jo 19, 30), mas tudo já estava decidido. Sua decisão tomada foi bem mais forte que um momento de sofrimento que queria tomá-lo. Em um mesmo momento entrelaça-se a vontade de Deus os questionamentos humanos, sobressaindo finalmente o querer do Pai.
Segue-se daí toda o desdobramento da opção de Jesus: beber o cálice que tinha diante de si. Toda a sua paixão, sua morte e tudo o que sucedeu por mais uma vez dizer sim a Deus, foram sedimentados na convicção e motivação cada vez maiores. A certeza de Jesus de que tudo assumia por amor a Deus e aos homens o fez irrevogavelmente ir até o fim. E diante de tudo isso, ao invés de perguntarmos: Por que Deus deixou seu Filho sofrer daquela forma, sem intervir? É bem melhor reconhecermos que Deus, de tão unido ao seu Filho, valorizando sua decisão tomada, com ele sofre e solidariamente silencia em seu sofrimento.
No entanto, toda essa fidelidade de Jesus ao Pai, essa comunhão plena que os leva à unidade em cada instante tem seu ponto de chegada na Ressurreição. O grão de trigo morreu, mas se tornou semente; as nuvens não conseguiram apagar a irradiação do sol, nem as alturas das montanhas puderam cobrir o horizonte intangível que existe para além delas. Confirmou-se aí que os sofrimentos vividos não tiveram proporção com a glória alcançada pela ressurreição, vitória de Deus em Jesus. E mais, ele que assumiu sozinho o cálice no Getsêmani, agora partilha com a humanidade inteira o fruto de sua opção, sua vitória. Os confins de toda a terra puderam rejubilar.
Nossa experiência à luz da experiência de Jesus
E nós, à luz da experiência de Jesus, como lidamos com as experiências dolorosas frente as quais nos encontramos tantas vezes? O que fazemos diante do sofrimento? Como a Jesus, eles vêm a nós como conseqüência de nossa opção? Ou porque ainda não temos claro nossa opção por Deus, pelo Reino, pela Igreja? Temos buscado qualquer explicação para o sofrimento, ou deixamo-nos esclarecer pela experiência de Jesus, que por amor soube superar suas experiências dolorosas?
Crentes e descrentes, cristãos e não cristãos vivenciam por vezes a experiência do sofrimento. Mas o que diferencia esta experiência comum a todos? Respondendo isso diríamos, a forma ou postura diante do mesmo. Há muitos para quem sofrer é perder (somente!), no entanto, permanecer nisso é desanimador e pode tirar o sentido que pode ser encontrado aí. Sabemos que ninguém é feliz porque sofre – isto seria doentio-, mas pode, de acordo com sua postura diante do sofrimento, chegar à felicidade, basta que não deixe de amar e encontre uma humanização maior por meio de tal experiência. A felicidade adquirida assim é entendida como ter fé, e nunca se sentir só, mas tendo o próprio Deus como seu ponto de apoio[4]. É senti-lo tão íntimo a nós que a dor de um momento vivido não impede o alcance do nosso olhar para além do qual sempre devemos ir.
O sofrimento, qualquer que seja ele, não se explica em seus mínimos detalhes, mas pode ser assumido corajosamente pelo grande “detalhe” do amor. Explico-me! Somente o amor encarado à maneira cristã possibilita esse impressionante paradoxo: alegria no sofrimento[5]. É assim que acontece com Jesus, na vivência do duplo objetivo do amor: amor à coisa infinita e amor à coisa limitada. Amor a Deus e amor aos homens[6].
O seguimento de Jesus tem lá suas radicalidades, sem as quais o verdadeiro discípulo não pode entender-se. Vitória sem batalha? Chegada sem percurso? Maturidade sem desafios? Ressurreição sem cruz? É nestas dualidades que se trava o desafio cristão. A identificação com Jesus também supõe a cruz. E deixem que o chamem de louco, não importa. Do contrário, não seria a vida cristã um questionamento para o mundo. Vale aqui lembrar alguns testemunhos de grandes servos de Deus, hoje modelos para a vida cristã.
“Já não sofro em sofrer” (Sta. Elizabete da Trindade).
“Quem não compreende ainda o mistério da cruz, ainda não compreendeu o cristianismo” (D. Chautard)
“Quem dera, Senhor, sofrer o que sofreste” (S. Francisco de Assis)
“Só um desejo tenho, Senhor, sofrer e ser desprezado por amor de vós” (S. João da Cruz)
“Minha Madre, o Cálice está a transbordar. Francamente, nunca teria imaginado que seria possível padecer tanto… Só acho explicação no meu incomensurável desejo de salvar almas…
E ainda:
“Tudo quanto deixei escrito sobre minha sede de sofrimento é pura verdade. Não me arrependo de me Ter entregue ao Amor”. (Sta. Teresinha do menino Jesus).
Finalmente
Assim entendemos o por quê de Jesus aceitar o Cálice, fazendo assim o querer de Deus. Tudo ganha sentido quando se permite que o amor seja a grande forma dinâmica da opção que se faz. Este exemplo de Jesus aumenta em nós a convicção de que, como cristãos, seja qual for a dificuldade, o problema, o sofrimento que nos apareçam, sempre perderão sua força como tais, porque “já somos mais que vencedores em virtude daquele que nos amou” (Rm 8,37) e, além disso, ganharão sentido, porque assim como o Mestre, a nossa história, missão e vida, com tudo o que ela contém, encontra seu verdadeiro sentido em Deus, com Deus e para Deus. E continua assim a ecoar em nossos corações o que nos assegura a Escritura Sagrada: Nada nos pode separar do amor de Deus… nem mesmo o sofrimento (Rm 8, 39).
*Ir. Pe. Carlos César, NJ é membro do Instituto Religioso Nova Jerusalém. Graduado em Filosofia pela Faculdade Católica de Fortaleza; bacharel em teologia e mestre em Teologia Sistemática na área de Bíblia pela FAJE (Faculdade Jesuíta de Filoso a e Teologia – BH). Autor de dois livros: “Ministério de música: um serviço de frente” e “Vou levar-te ao deserto e falar-te ao coração”em Teologia pela Faculdade
[1] GOURGUES, M. Jesus diante de sua paixão e morte. São Paulo: Paulinas, 1985, pp. 73-74
[2] Somente em Marcos percebemos a invocação do Abbá. , fórmula comum entre os primeiros cristãos (cf. Gl 4,6; Rm 8, 15). Sua tríplice aceitação do ‘cálice’ de amargura contrasta com a tríplice falta dos discípulos de não estarem despertos. A renúncia à sua própria vontade é uma dramática ilustração da ‘renúncia a si mesmo’ (Mc 8, 34-37), cf. MARTINEZ, Fernández Serafín. In Comentário Bíblico Internacional. Navarra: Verbo Divino, 1999, p. 1239
[3] Ibid., op.cit. pp. 69-70
[4] MOHANA, J. Sofrer e amar. Rio de Janeiro: AGIR, 1963, pp. 54-55
[5] “Quanto mais profunda a capacidade humana de sofrer, tanto maior será a sua experiência da felicidade” (Jurgen Moltmann).
[6] MOHANA, op.cit. pp.234-235