O mal entra no mundo

O mal entra no mundo

Por Ir. Ayla Luzia Pinheiro Andrade, NJ*

No terceiro capítulo do livro do Gênesis temos o relato do pecado. A forma como é narrado apresenta três rupturas, ou seja, três separações: a primeira é a ruptura do homem com Deus; a segunda é a ruptura entre esposo  e esposa, isto é, entre os seres humanos entre si, que passam a se acusarem; a terceira é a ruptura do homem com a natureza (que passa a causar-lhe  doenças). Tudo isto já existia no tempo em que o autor escrevia e ele procurou dar uma explicação para isto, como sendo conseqüência do pecado.

O pecado original não significa que a ação pessoal do primeiro grupo humano seja colocada sobre nós como se a tivéssemos herdado. Também não se trata de que todos os homens nasçam como produtos defeituosos de uma fábrica. A narração bíblica não está interessada em provar que Adão pecou, ela quer alertar às pessoas que todos são pecadores, pois somos todos Adão. A nossa condição pecadora é fruto de nossa liberdade em nossa natureza limitada. A Bíblia não pretende informar sobre o que aconteceu no começo da história da humanidade. Ela só diz que na raiz de todos os males, reside o abuso que o homem faz de sua liberdade, rompendo com sua origem que é Deus. No tempo em que se escreveu esse relato da Bíblia, esse abuso da liberdade se concretizava na apostasia do povo, que abandonava Deus, preferindo o culto mágico da fertilidade, dos cananeus.

É claro que os “castigos” que Deus dá a Adão e Eva, são coisas normais e que o autor, por não entender estes sofrimentos, imaginava que só podiam ser castigos de Deus por causa do pecado.

Uma outra coisa importante é que colocando o mal na forma de uma serpente, o apresenta sem ser dotado de poder, isto é, seu poder está no  consentimento do homem, o mal é apresentado como um ser rastejante, que pode ser derrotado pela própria mulher que o escutou. A mulher, por não ter força física (para lutar na guerra) é considerada frágil, mas por mais frágil que possa ser, pode pisar a cabeça da serpente, mesmo que seja ferida por ela. O autor pretendia combater certas doutrinas de outros povos que diziam que haviam deuses do bem e deuses do mal com o mesmo poder. Ele colocava um só Deus que é bom, o mal não é deus, é algo que pode ser dominado pelo homem. Deus é a verdade, o mal é a mentira. A criação é obra fundamentalmente boa. O autor repete isto após cada coisa criada para que o leitor não  responsabilize Deus pelo mal que existe no mundo. A maior parte dos sofrimentos provém dos homens:

A – de suas limitações

B – de seus pecados

Deus não é cúmplice da maldade dos homens. Deus respeita a liberdade do homem, mesmo quando este quer ser mau. O sofrimento não é castigo de Deus como se pensava antigamente (Jo 9, 1-3). O mal é um mistério. Não compreendemos exatamente porque existe o mal, mas sabemos com certeza que o autor do mal não é Deus. Ele quer que vençamos nosso egoísmo e nossa passividade e lutemos contra o mal, físico, psíquico e moral, com todas as nossas forças.

Há muita gente que diz que o pecado de Adão e Eva foi pecado de ordem sexual. Não é verdade; não está na Bíblia. Pelo contrário, a Bíblia diz que Deus criou o homem e a mulher e deu-lhes ordem para terem muitos filhos: “Sede fecundos e multiplicai-vos” (Gn 1,28). Portanto, a ordem para uma vida sexual entre eles é anterior a uma transgressão que vem narrada depois (Gn 3). Além do que, para ser pecado sexual, deveria haver proibição de Deus nesse sentido. E não há. Há, pelo contrário, ordem de Deus para o casal procriar, ter filhos, constituir família.

O autor bíblico não está querendo também descobrir qual o primeiro pecado do homem. Nós é que damos ao texto uma interpretação que é estranha para o próprio autor. A intenção dele é outra: ele não quer demonstrar que houve pecado que se teria transmitido de pai para filho; ele apenas constata que há pecado no mundo; constata que existe em cada pessoa a misteriosa e inexplicável tendência para o mal. Diante da lei de Deus, o homem é tentado a escolher o mal e não o bem. É isso um mistério profundo que se esconde no coração do homem.

A narração bíblica sobre o pecado original é montagem literária feita sobre uma grande verdade: o homem pecou, errou no passado porque ele peca e erra no presente. E para retratar tudo isso, o autor bíblico usa a linguagem simbólica e elementos de sua cultura: nudez, voz de Deus, esconder-se de Deus etc., como vimos. Para o autor, todo homem é Adão, isto é, pecador. E apesar de todas as amargas experiências anteriores, o homem quer sempre experimentar! O pecado original, então, não existiu, mas existe; não aconteceu, mas acontece.

Para o autor bíblico, a tarefa mais importante não é a de descobrir qual foi o pecado original, mas sim como combatê-lo agora, em cada pessoa, em cada estrutura, em cada época. Combater esse mal de origem é também reconstruir o paraíso.

O paraíso bíblico, como lugar geográfico, jardim de flores, com muita água, plantas frutíferas e brisa suave, nunca existiu e nem existe. O paraíso descrito na Bíblia não é lugar, mas é o estado de justiça, de paz, de fraternidade, de felicidade em que o homem deveria viver. Esse paraíso, como estado de justiça, paz, felicidade não foi destruído, pois é o projeto de Deus para o homem.

A narração sobre o paraíso na Bíblia é apenas um modo de escrever, é descrição de estado de felicidade segundo modelo oriental. Para o autor bíblico, a descrição tem a finalidade de mostrar o contraste da realidade em que vive. O projeto não era daquilo que os homens de seu tempo viviam, mas era exatamente o contrário; daí a intenção do autor em mostrar com seu escrito que todo homem deve lutar para reconstruir o paraíso querido por Deus. O paraíso, então, existirá quando o homem conseguir eliminar as estruturas geradoras do mal, do pecado, da injustiça. É o homem quem constrói ou destrói o paraíso querido por Deus.

Na construção desse estado de felicidade o homem defrontar-se-á sempre com enormes dificuldades. A Bíblia exprime essa idéia dizendo que havia querubins (=anjos) com espadas flamejantes guardando o paraíso ( Gn 3,23-24). A reconstrução do paraíso será possível só depois de superados todos os obstáculos e coma a ajuda misericordiosa de Deus. Sem isso é impossível “estender a mão, tomar da árvore da vida, dela comer e viver para sempre” (Gn 4,22b).

O paraíso existe como possibilidade de realizar o projeto de Deus, o plano de Deus. Plano de felicidade e de vida para o homem. Para isso é preciso que o homem volte á observar a lei de Deus, que agora é a lei de Cristo, e assim possa viver para sempre.

 

* Aíla L. Pinheiro de Andrade é membro do Instituto Religioso Nova Jerusalém. Graduada em Filosofia pela Universidade Estadual do Ceará e em Teologia pela Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia (FAJE), onde também cursou mestrado e doutorado em Teologia Bíblica. Leciona na Faculdade Católica de Fortaleza e em diversas outras faculdades de Teologia e centros de formação pastoral.

 

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