DOIS IRMÃOS

DOIS IRMÃOS

Numa leitura superficial sobre Caim e Abel, Deus aparece como um sanguinário que provoca o primeiro assassinato. Mas a base desse texto é a crença de que a vida (vegetal, animal, humana) vinha de Deus e por isso se fazia oferenda em reconhecimento disso. Para a Escritura a oferenda não podia ser apenas para se evitar um castigo de Deus. No texto bíblico não parece que o Criador abençoe uma oferta de sangue em vez de vegetais. O que o texto diz é o seguinte: Caim: “trouxe do fruto da terra uma oferta” (Gn 4,3) e não as primícias. Ou seja, apenas cumpriu um ritual para assegurar a colheita do ano seguinte.

“Abel, por sua vez, trouxe das primícias do seu rebanho e da gordura (em hebraico: lev = coração)” (Gn 4,4). Abel trouxe o melhor. O único sangue que aparece neste texto é o de Abel (v. 10). Esse texto quer falar de inveja, de ganância e de pessoas que usam a religião em função dos próprios interesses. Não há nenhuma referência a um Deus sanguinário, mas a um homem sanguinário. A tradição popular de Caim e Abel falava do difícil processo de sedentarização dos hebreus, principalmente por causa do Quenitas (Caim) que eram muito violentos.

Trata-se de um conflito entre povos. O pastor é nômade porque a vida dele está nos rebanhos ao qual ele deve acompanhar. O agricultor é sedentário porque toda a riqueza dele está na semente que depositou no solo e que ele defende a qualquer custo. Para o pastor a terra foi doada por Deus a todas as pessoas e quem não partilha a terra está sendo ambicioso.

Vejamos esse mito em três versões:

1) A versão do agricultor: Era uma vez os deuses sumérios Dumuzi, o pastor, que competiu com Enkimdu, agricultor, pelo amor de Inanna. Esta escolheu Dumuzi como marido. Por causa da ambição dela (desejo de trazer o mundo inferior sob seu domínio), Inanna decidiu descer ao mundo inferior, no qual ficou presa. E Enkimdu fez magias pelas quais Inanna foi estabelecida à vida. Entretanto havia uma lei no mundo inferior que ninguém poderia ser devolvido à superfície sem prover um substituto. E Dumuzi, o marido devia substituí-la. Só que Dumuzi não podia ser mantido lá para sempre e voltava a cada primavera. E assim Dumuzi passou a ser considerado Tammuz, responsável pela fertilidade do solo.

2) A versão do Pastor: Era uma vez Caim (EnKimdu) e Abel (Dumuzi) que competiam pelo amor do SENHOR. Parece que o problema não foi a oferta, mas o coração do ofertante. Naquele contexto era impossível conciliar pastores e agricultores, inimigos mortais, pois ovelhas invadiam as plantações, mas o autor bíblico teve a coragem de afirmar: “O pastor (Abel) e o agricultor (Caim) são irmãos”.

Essa narrativa bíblica parece ser do mesmo contexto de Is 56, quando se propõe uma abertura religiosa. Uma época em que os judeus já estão há bastante tempo no exílio da Babilônia. O mais importante para aqueles que estão no estrangeiro é ser luz para as nações e não guerrear com elas. Por isso o autor, do texto de Caim-Abel, no exílio, diz *somos irmãos*. Lembremos que a Babilônia foi acusada de ambiciosa e invejosa (2Rs 20,15). A Babilônia seria Caim e Judá seria Abel.

No processo histórico, o nomadismo veio antes da sedentarização, no entanto, a narrativa nos diz como o SENHOR castigou Caim: “serás fugitivo e errante pela terra. Então, disse Caim ao SENHOR: É tamanho o meu castigo, que já não posso suportá-lo. Eis que hoje me lanças da face da terra, e da tua presença hei de esconder-me; serei fugitivo e errante pela terra; quem comigo se encontrar me matará” (Gn 4,12-14).

Então:
a) Aquele que era sedentário se tornou nômade (errante). O inverso (proposital) do processo histórico. Deus estaria dizendo: Caim
(sedentário) seu castigo será viver a vida que você tirou do seu oponente (nômade). Pois, somente se colocando no lugar do outro é que poderá entendê-lo;

b) O texto dá uma dica clara sobre o contexto histórico, perguntemos: para quem “ser lançado para fora da terra” é um castigo insuportável? O judeu fora de Israel. Viver errante é viver no exílio, na diáspora. No final, tanto Abel, quanto Caim, são apenas duas faces da mesma moeda, ou da mesma pessoa.

3) A versão de Jesus: Era uma vez um homem que tinha dois filhos (Lc 15,11). O mais novo “se mandou pelo mundo”, e gastou tudo numa vida dissoluta. Depois que a “grana” acabou e os “amigos” sumiram, ele voltou para casa, confiando no amor de seu pai. Este ficou feliz, mandou matar o novilho cevado (o melhor) para o filho. Será que tem alguma coisa a ver com Abel também ter dado o que tinha de melhor? Mas, o filho mais velho, voltando do campo (Lc 15,25, era agricultor) ficou indignado: “nunca mataste um cabrito pra mim?” (Lc 15, 29) (inveja e ambição). E acusou o irmão de gastar o patrimônio da família com prostitutas (Lc 15,30). Exagero muito comum aos judeus mais rigorosos, acusar os judeus da Diáspora e os gentios em geral de idólatras (= prostituição). A primeira parte da parábola apenas afirma que o filho mais novo foi dissoluto, que os amigos só duraram enquanto a grana durou e que ele sofreu muito. Mesmo assim o pai quer bem aos dois por igual.

A parábola do Filho pródigo deve ser estudada no contexto das outras duas parábolas dos perdidos: a ovelha e a moeda. O contexto é de um debate entre Jesus e alguns escribas Lc 14. O evangelista quer mostrar que Jesus contou algumas parábolas para explicar seus argumentos aos opositores. Jesus aproxima-se dos pecadores porque esta é a vontade do Pai Criador. Esta vontade já estava expressa na releitura bíblica dos mitos antigos e nas Escrituras dos Judeus.

O texto de Caim e Abel é um mashal para dizer aos judeus da época que os babilônicos ou qualquer outro adversário deve ser considerado irmão. É verdade que há violência entre as pessoas, mas Deus nos fez irmãos e não inimigos eternos como afirmava o mito antigo.

Bem, os três textos falam de conflitos e discórdias. O texto de Gn não é apenas a versão pastoril. O SENHOR ama Caim e ama Abel, só que a ferta de Caim não valeu, pois não veio do coração. Não adianta só cumprir um ritual. O filho mais velho do texto de Lc também cumpre tudo (Lc 15,29) e não ama, nem uma vez pronuncia a palavra PAI.

Os dois textos bíblicos dizem: somos irmãos. Deus não quer guerra entre pastores e agricultores, eles não são inimigos, são irmãos. IRMÃO, palavra mais repetida no texto de Caim e Abel. Deus não quer guerra entre as etnias, nações e religiões. Jesus não quer a discórdia entre seu seguidores e o povo a que ele pertence (Lc 15,1-2).

* Aíla L. Pinheiro de Andrade é membro do Instituto Religioso Nova Jerusalém. Graduada em Filosofia pela Universidade Estadual do Ceará e em Teologia pela Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia (FAJE), onde também cursou mestrado e doutorado em Teologia Bíblica. Leciona na Faculdade Católica de Fortaleza e em diversas outras faculdades de Teologia e centros de formação pastoral.

Voltar ao Topo