Filmes “bíblicos” não são a Bíblia

Filmes “bíblicos” não são a Bíblia


Marco Antonio Tourinho*

Vivemos numa sociedade que cada vez mais prioriza a imagem. E desprestigiamos a leitura, o esforço que ela exige. Neste mundo da hegemonia da imagem não surpreende a proliferação de filmes “bíblicos”  ou inspirados nela, disponíveis em lojas, magazines, sites, locadoras, etc. Também eles são exibidos em canais de televisão, religiosos ou não. Até aí, nada demais.

A proliferação destes filmes “bíblicos”, seja em desenhos animados ou não, coloca questões relevantes, principalmente quando muita gente diz “conhecer” alguns livros bíblicos através de filmes, e citam cenas “importantes” e bonitas ou espetaculares deles.

A primeira questão é que um filme “bíblico” não é a Bíblia! Ele é uma versão do diretor, de produtores, e de certo modo também dos seus desenhistas, atores e demais participantes da equipe do filme. Ele é uma criação mais ou menos livre, mais ou menos fiel ao texto bíblico, dependendo do que diretor e produtor desejam.

O cinema é, em primeiro lugar, uma indústria de entretenimento, com fins lucrativos. Para ser bem lucrativo quanto mais efeitos especiais, mais espetaculares forem as cenas, a representação, ou mais escandalosa, maior a chance de atrair a atenção da imprensa, mídia e, a partir daí, atrair espectadores.  Se o diretor conseguir realizar um filme bíblico exagerando na narrativa e encenação, crescem as chances de sucesso de bilheteria, de venda de DVDs, etc.

Um dos problemas da transposição do texto bíblico para o cinema é que é, inicialmente, uma escolha do diretor sobre que narrativa bíblica escolhe para encenar. Por exemplo: temos no livro do Êxodo versões de diferentes tradições sobre a passagem do Mar Vermelho. A bíblia acolhe estas versões diferentes sobre a saída do Egito.  Em Ex 11,1 diz que enviará uma praga e o faraó deixará partir o povo. Em 14, 5 diz que o faraó ficou sabendo que o povo tinha fugido. Em 13,17-18 temos que o faraó deixou o povo partir, e o povo atravessou o deserto do mar de Juncos, o que supõe que o povo atravessou neste mar. Como juncos são arbustos que crescem em regiões pantanosas, teriam, então, atravessado em terreno pantanoso. Já 14,15-16.29 relata que Moisés levantou a vara e houve a separação do mar e a passagem do povo a seco, que é a versão da tradição chamada de sacerdotal, mais recente do que outras tradições e a mais fantasiosa. Mais adiante (14,25-25) fala que houve confusão no acampamento dos egípcios e os seus carros ficaram emperrados. Em 14, 26-27 afirma-se que os egípcios foram tragados pelas águas no meio do mar, noutra versão da derrota egípcia. Ora, a versão mais fantasiosa, mais espetaculosa, e mais distante dos prováveis eventos é exatamente esta tradição sacerdotal, do mar separado. Outras sugerem uma passagem em mar de juncos ou no deserto. Mas, por ser a mais fantasiosa, é a que Hollywood fez crer, em seus filmes sobre o Êxodo, ser a única versão bíblica da saída do Egito.

O exemplo acima é o comum nos filmes “bíblicos”: se há mais de uma tradição, com diferentes relatos, a mais fantasiosa é apresentada como única. E para muitas pessoas esta versão cinematográfica torna-se a “única” e verdadeira versão bíblica.

Um segundo aspecto limitado da leitura cinematográfica é que ela tende sempre a mostrar o relato bíblico fora de um contexto e desconhecendo o simbolismo e a significação cultural destes elementos. Por exemplo, nas narrativas em que elementos do cosmos são citados temos sempre a leitura exagerada do fantástico, desconhecendo-se alegorias, linguagens simbólicas.

Assim, se o sol “parou” em Jericó a narrativa será literal. Ora, se o Sol parasse sabemos, pela ciência, que a própria Terra passaria rapidamente por imensas transformações. Mudanças de temperatura, rapidíssimas, ameaçariam a vida. Mas a linguagem simbólica é desconhecida. Essa linguagem simbólica mostra que a luta era tão forte que até o cosmo parou, ou de que mesmo no escuro se lutava como à luz do sol. É que na claridade os golpes de lanças, as flechas de arqueiros e outros podem visualizar seus inimigos e acerta-los com mais precisão.  Quando se trata do livro do Apocalipse então, os diretores se acham no direito de “viajarem na maionese”, como se diz na gíria, de modo a desconhecer tudo que é passível de explicação simbólica, seja existente na própria bíblia, em livros como Daniel, Ezequiel e outros, ou através de pesquisa histórico-cultural sobre o que poderiam significar estes símbolos na época, como o número 666, os relatos sobre as sete igrejas, etc. Neste caso alguns se arvoram em intérpretes e até em profetas ao preverem, para breve, o “fim do mundo”. O livro do Apocalipse não se refere ao fim do mundo, mas ao fim de um tempo de perseguição da Igreja e dos cristãos realizada por imperadores romanos. Mas rende muito dinheiro os filmes que falam de fim de mundo com “previsão bíblica” ou uso de símbolos bíblicos, como 666, pois exploram o desconhecimento bíblico do povo e o medo. Neste caso são apenas filmes que se inspiram na bíblia, mas ficam longe do que ela diz, escolhendo trechos bíblicos e recortando-os de um conjunto para explorarem o medo natural que o tema “fim do mundo” desperta em muita gente.

Um terceiro aspecto é que mesmo os relatos fantasiosos nem sempre estão presentes na bíblia e são tirados de outros livros que não a bíblia. Num certo filme sobre a vida de Jesus ele, ainda criança, saía assoprando sobre rolinhas mortas e fazia prodígios fantasiosos que aparecem em livros apócrifos, os quais não foram aceitos pelas comunidades cristãs entre os livros sagrados. Ora, se Jesus já fazia tantos prodígios como menino, seria de se espantar que as pessoas não o seguissem desde a mais tenra idade. E aí não seriam necessárias as suas pregações e sinais/milagres de sua fase adulta. Quem não se espantaria de uma criança que ressuscitasse animais? Neste caso talvez muitos estivessem dispostos a ver nesta criança um deus ou semi-deus.  E seria dispensável sua pregação de adulto, pois desde cedo multidões o seguiria. Portanto, se é fantástico e fantasioso, os diretores vão buscar em livros fora da bíblia uma versão que lhes renda lucro. E muitos o fazem.

Por tudo isto é preciso muito cuidado com “filmes bíblicos”, seja de perfil “histórico” ou inspirado nela, seja desenho animado ou de “previsões bíblicas”. Muitos destes filmes pouco tem a ver com a bíblia, possuem graves erros, são espetaculosos, usam livros apócrifos ou se arvoram em “prever biblicamente” o fim do mundo para breve, e assim visam ganhar muito dinheiro.

Mesmo filmes mais fiéis ao texto bíblico não dispensam a leitura e o conhecimento do texto bíblico. É no texto bíblico, e somente nele, que devemos buscar o projeto de Deus para seu povo. Os filmes bíblicos podem auxiliar, mas nunca substituem a leitura, a meditação e oração com o texto da Palavra de Deus. Depois de conhecer este texto, estuda-lo, aí sim, podemos ver estes filmes com olhar crítico, identificando inclusive se são fiéis ao texto ou apenas exploram a bíblia, se usam livros apócrifos ou se arvoram em interpretes da bíblia para terem grandes lucros, infelizmente à custa, inclusive, da ingenuidade do povo e de muitos cristãos.

 

* Membro do Movimento Bíblico Nova Jerusalém.

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