A vocação de Isaías (Is 6)

A vocação de Isaías (Is 6)

Hoje, de modo geral, se reconhece que o livro de Isaías tem composição diversificada. Toda a obra não poderia ter sido redigida por esse profeta do século VIII (capítulos 1 a 39), denominado “Primeiro Isaías” ou “Proto-Isaías”, tanto pelo estilo quanto pelo contexto histórico. Mas é importante saber que toda a Bíblia não foi escrita de uma vez, e sim em “mutirão” ou em “retalhos”. É como edificar uma casa: um prepara a massa, o outro constrói, reboca, um outro pinta e, por fim, alguém dá os acabamentos. Os capítulos 40 a 55 formam o “Segundo livro”, também chamado de “Segundo Isaías”, “Deutero-Isaías” ou ainda “Livro da Consolação” de Israel, devido a primeira palavra que se destaca: “Consolai, consolai, meu povo” (Is 40,1) e teor ameno de seu conteúdo, em contraposição ao “Proto-Isaías” que apresentava ameaças e castigos. Agora, a consolação será o principal tema deste autor anônimo do final do grande Exílio da Babilônia (séc. V a.C). O livro recebeu ainda um terceiro acréscimo, os capítulos 56-66, que foram denominados “Trito-Isaías” ou “Terceiro Isaías”. Portanto, o relato da vocação do profeta encontra-se no sexto capítulo, na primeira parte, o que dá ainda mais autoridade à literatura sagrada e proximidade à figura do profeta, onde “o autor revela-se com ouvido apurado, amante da brevidade e da concisão, com alguns finais lapidários” (SCHÖKEL; SICRE, 1988, p. 91).

A palavra “vocação” tem sua origem no latim, trata-se do verbo vocare, que significa chamar, convocar, apelar. E quem é o profeta? “Antes de tudo é alguém que foi chamado. É o chamado que define realmente o profeta. Sua vocação nasce no meio de um povo também eleito. É no meio deste povo que se deve entender o sentido da vocação profética: orientar Israel para que caminhe na fé e na obediência diante do Senhor” (SCHÖKEL; SICRE, 1988, p. 31). São homens e mulheres que trazem tarefas decisivas na vida de uma sociedade, pois fizeram experiência radical com a palavra de Deus. Assim se sucedeu na vida de Isaías, que teve uma experiência formidável, embora difícil, com essa voz divina. Os pormenores de seu chamado revelam-se tão atuais como nunca.

Sobre a pessoa de Isaías e sua vida íntima dispomos de pouquíssimos dados. Provavelmente tenha nascido em Jerusalém por volta de 760 a.C. e seu pai chamava-se Amós (que não se deve confundir com o outro profeta de Técua). Ele viveu no Reino de Judá, na época da morte do rei Ozias, mais ou menos pela guerra siro-efraimita em 734-733 a.C, tempo de grande destruição e calamidade. Porém, sua mensagem central não será negativista, e sim, esperançosa, o que o fará elaborar uma “teologia do resto”, ou seja, reflexão sobre uma porção do povo que ficará sempre fiel à palavra do Senhor. Era muito jovem quando recebeu sua vocação profética, o que lhe possibilitou “precocemente” uma abertura à perspectiva de um mundo novo. A imprecisão de datas só nos leva a supor que não passava dos vinte anos quando isso ocorreu. Depois disso, contraiu matrimônio, mas o nome de sua esposa permanece anônimo, chamada apenas de “profetisa” (Is 8,3), com quem teve pelo menos dois filhos, ambos com nomes simbólicos: Sear Jasub (“um resto voltará”) e Maher Salal Has Baz (“pronto ao saque, rápido aos despojos”). A data de sua morte também segue improvável, a sugestão é de depois de 701. O talmude, espécie de “catecismo judaico”, sugere que tenha sido assassinado por Manassés, que ordenou lhe cortarem ao meio com uma serra, mas isso parece não ter fundamento, defendem Schökel e Sicre (1998, p. 102).

Afresco do Profeta Isaías na Igreja alemã do Coração de Jesus por Friedrich Stummel e Karl Wenzel, final do século XIX e início do XX.

O caráter de Isaías pode ser conhecido suficientemente através de sua obra. É homem decidido, sem falsa modéstia, que se oferece voluntariamente a Deus no momento de sua vocação. Esta mesma energia demonstrou-a anos mais tarde, quando teve de enfrentar os reis e os políticos: jamais se deixa abater e, se se cala durante alguns anos, não é por desânimo. Isso mesmo faz com que apareça às vezes como que insensível, porém, antes deveríamos falar de paixão bem controlada.

SCHÖKEL; SICRE, 1998, p. 102.

Alguns estudiosos gostam de classificá-lo como visionário e mensageiro. Existe uma ênfase em dizer que não se trata de uma mensagem que falou apenas no passado, mas pelo contrário, “poucos legados literários estão tão impregnados de perspectivas futuras como esse livro do profeta de Israel” (SCHMITT, 2013, p. 382), e a vocação de Isaías diz respeito a muitas dimensões da existência humana. Os profetas não são pura e simplesmente expectadores de uma revelação, mas mensageiros e visionários, tornam-se testemunhas de uma experiência concreta de vida, não são simples videntes de coisas do passado (cf. 1Sm 9,9), não criam nem inventam palavras, mas sua mensagem sempre tem hora e lugar.

A localização do relato da vocação de Isaías é curiosa. Geralmente, a vocação dos profetas aparece já no início de seus livros, o que não é o caso de Isaías. Porém, isso não o faz menor que os demais. Existe aí uma unidade literária entre os capítulos 6 a 9, no primeiro âmbito das duas maiores unidades do conteúdo: 1 – 12 e 13 – 27. A política aqui aparece em forma de poesia, o que constitui uma “pérola da poesia hebraica”. Embora repleto de discursos, o que predomina é a forma poética, marcada pela repetição. Esta repetição constitui elemento indispensável para a semântica poética no hebraísmo antigo, enriquecendo-o de sentido teológico.

Como nos famosos relatos vocacionais da Bíblia Hebraica, Isaías traz um esquema comum: teofania – missão – objeção – sinal. Assim foi também com Abraão, Moisés, Gideão, Samuel, Amós, Jeremias, Ezequiel etc. Refletir a vocação do profeta pode ser o mesmo que estar em contato com a vocação de cada homem e mulher, pois a Bíblia tem muito em comum conosco, os mesmos anseios, os prazeres da vida, o sentido da beleza ou a resistência a ele, nossos dramas, esperanças, desesperos, nossa busca pela eternidade, enfim, nossa consciência de estar afastado de Deus ou o desejo de (re)encontrá-lo. A Bíblia não está distante de nós…

O capítulo 6 pode também ser divido em quatro partes: introdução (v. 1-4), reação do profeta (v. 5-7), sua missão (v. 8-10) e, por fim, o prazo da pregação (v. 11-13). Se analisarmos versículo por versículo, poderemos elaborar uma leitura a partir da sensibilidade humana, conforme observa Schmitt (2013): visão (v. 1-4), tato (v. 5-7), audição (v. 8-10) e ação (v. 11-13), revelando-nos que a mensagem de Isaías continua impressionante, especialmente quando ele se depara entre duas e distintas realidades, a santidade de Deus e o estado de seu povo e, quando no conhecimento de Deus é possibilitado, também, um encontro consigo mesmo. A vocação desse homem é uma verdadeira liturgia: simbólica, intuitiva, criativa! Para Schmitt (2013, p. 401 ), “vocação rima com povo, com santidade, com disposição e compromisso, com esperança”, pois diante do chamado divino é preciso a colaboração humana, isto é, deixar-se enviar; é preciso ser “visionário”, no sentido de buscar obter a visão de Deus, sentir o efeito de sua presença e agir em nome da causa.

Numa leitura atenta e espiritual desta profecia, nota-se que Isaías não esconde seu semblante de angústia, pois se depara com o cinismo e loucura de seu povo. Deus o adverte a não percorrer este mesmo caminho. A preocupação principal do profeta não era, na verdade, a política exterior de Judá, ameaçada pelos assírios, e sim o estado interior do povo em um contexto de prosperidade em que vivia: “o rei é astuto, os sacerdotes estão orgulhosos e o mercado está ocupado” (HESCHEL, 1973, p. 158). O sentimento de Isaías parece confundir-se com a angústia divina, ele não levanta perguntas, mas uma exclamação de o quão maravilhoso é o mundo que Deus criou e quão horrível é o mundo que os homens tem feito! Assim, o profeta presencia a blasfêmia e confusão do mundo, as visões que lhe vem constantemente são de destruição (Is 5,25), seguidas do juízo divino (Is 30,27-28; 13,11-13).

Tais visões não tratam de destruição em si mesmas, mas expressam antes a aflição de Deus, mostram a luta de um pai que não pretende abandonar seus filhos (Is 1,2-3). “O cansaço de Deus é uma categoria teológica importante no pensamento de Isaías, representa uma ocultação ainda maior de seu compromisso pessoal na história” (HESCHEL, 1973, p. 164), é o momento em que a ira divina se revela. Há uma troca enfática de um pathos (amor) como emoção pelo pathos de ação, a situação divina também mostra que a aflição de Deus é expressão de seu amor, Ele está ansioso para perdoar seu povo e apagar seus pecados (Is 1,18), pois Deus é mais que um senhor e amo, é Pai (Is 1,2-4; 30,1). Em Isaías, sua simpatia para com Deus é evidente porque a aflição de Deus se revela mais que a tragédia do povo, levando o profeta a interceder pelos pobres e humildes e a condenar os cruéis. 

Mas a identificação de Isaías não se dá apenas ao pathos divino. Há uma solicitude de sua parte para com seu povo logo expressa no relato de sua vocação: “com efeito, sou homem de lábios impuros e vivo no meio de um povo de lábios impuros” (Is 6,5) e também costuma utilizar a expressão “meu povo” (Is 3,12; 8,10; 7,14). De espírito nacionalista, mas mostrando-nos que o pacto de Deus não se fez apenas ao povo de Israel, é também para toda a terra (Is 1,2; 45,22-25), evidenciando o caráter universal da salvação. Para Isaías, a principal enfermidade de toda humanidade é a insensibilidade. 

O Deus de Isaías “é, sobretudo, um Deus de justiça, não um mero protetor” (HESCHEL, 1973, p. 187). Isaías não é pessimista, mas tem esperança na humanidade. Esperança esta que se revela em duas etapas, uma que já se revelou a Israel: “Um resto retornará” (Is 10,21-22), portanto, imediata, parcial e histórica; e uma outra que se revelará num futuro distante, na escatologia, com a transformação do mundo. O Deus de Isaías é de esperança suprema! (Is 8,18).

E a voz de Deus continua chamando as pessoas, as sociedades e culturas a um diálogo, ela não esteve ativa apenas num passado distante, mas é realidade atual e eterna, desde a Criação à parusia no fim dos tempos. É possível encontrar na figura do profeta as categorias antropológicas e teológicas que permitem-nos fazer a conexão entre a sua experiência pessoal, ética e dignidade que devem ser vividos por todos os homens e mulheres. Só assim lançaremos luzes na busca do resgate da identidade do ser humano de hoje e, ainda, se queremos que a expressão “tradição judaico-cristã” tenha algum significado real, teremos que nos voltar aos profetas e novamente escutá- los.



Referências Bibliográficas

  • ALONSO SCHÖKEL, J.; SICRE DÍAZ, L. Profetas I: Isaías, Jeremias. Tradução de Anacleto Alvarez. São Paulo: Paulinas, 1988 (Coleção grande comentário bíblico).
  • BÍBLIA DE JERUSALÉM, 3ª ed. São Paulo: Paulus, 2004.
  • HESCHEL, Abraham Joshua. Los Profetas: El hombre y su vocación. Supervisión de Marshall T. Meyer. Buenos Aires: Paidos, 1973, tradução nossa.
  • SCHMITT, Flávio. Um chamado para a vida. Revista Pistis Prax. Ano V, n. 2. Curitiba, 2013, p. 381-403.

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