“O ágape não desaparecerá” (I Cor 13,8)

“O ágape não desaparecerá” (I Cor 13,8)

Por Ir. Márcio Bezerra, NJ*

Introdução:

Depois de vinte e um séculos de existência de cristianismo qual a novidade que ele ainda possui? Para uns, sua novidade foi para o túmulo com um certo Jesus. Para outros, vive claudicante e perdendo o sentido em cristãos cada vez mais distantes da práxis cristã. Este artigo quer, de modo simples, recordar a perenidade da força que motiva o cristão em sua caminhada: o ágape. Realidade que vem sendo embebida de um sentimentalismo que esvazia o seu sentido. Para isso, iniciaremos apresentando-o como dom que se manifesta numa prática de busca pelo outro. Num segundo momento, apresentaremos a comunidade de Corinto, passando daí ao texto de I Cor 13 e, posteriormente, ousaremos levantar chaves de interpretação para o ágape nos dias atuais.

 O dom do ágape:

Dom indica favor ou graça concedida. Teologicamente falando, Deus vai ao encontro do ser humano motivando-o ao movimento contínuo de busca de Deus no outro e do outro em Deus. Pode-se concluir que o dom concedido ao homem é para torná-lo próximo de seu semelhante (Lc 10, 29-37). Na realidade, a fé bíblica se manifesta horizontalmente (em relação com o outro), como apresenta I Jo 4,20: “quem não ama seu irmão a quem vê, não pode amar a Deus, a quem não vê”. A “fé” intimista, aquela vivida apenas numa relação vertical entre o homem e Deus, manifesta a não-experiência com o Senhor ou, no mínimo, a má interpretação dessa experiência.

Constantemente, se traduz o termo grego ágape por amor ou caridade, todavia para não correr o risco de esbarrar nas limitações criadas pelo uso constante dessas duas palavras na Língua Portuguesa, optamos por deixá-lo sem tradução. O termo ágape será compreendido neste artigo como a força motora que impulsiona o homem ao semelhante, força que elimina a possibilidade do egoísmo e projeta o ser humano para a prática da responsabilidade com o outro, independente de quem seja. É livre, sem interesse.

Sobre o assunto, a literatura bíblica oferece o belo hino ao ágape em I Cor 13. Ao falar dessa força motivadora, Paulo reserva o termo em questão para dizer a práxis unificante da comunidade. Essa práxis tem Deus como gerador (provém de Deus) e como fim (conduz a Deus), porém, há uma característica essencial: o ágape provindo de Deus toca o ser humano e o conduz à comunidade, conduzindo ambos para Deus. Dito de outra forma, ele é dom de Deus dado como força que conduz os membros da Igreja ao trabalho comum para o bem de todos.

 I Cor 13:

Tendo apresentado o ágape como dom de Deus para a coerente vivência da fé, é o momento de adentrar no contexto de I Cor 13 e compreender o que Paulo quis dizer àquela comunidade específica. De início, a comunidade de Corinto é marcada como um centro cultural da época, no qual várias culturas desfilam e são propagadas. Sendo uma cidade portuária, convive cotidianamente com a divulgação de costumes, filosofias, religiões e estilos de vida. Pode-se dizer que, para a maioria, o cristianismo é apenas mais um “estilo de vida” pregado naquela cidade. Porém, Paulo apresenta-o como o caminho que conduz a Deus, levando o homem à sua verdade pessoal. Sendo assim, o ágape é o combustível que o anima em sua caminhada rumo a seu Criador.

Quanto ao texto em si, o primeiro passo é localizá-lo dentro da epístola. O capítulo 13 situa-se no bloco que trata da prática dos dons carismáticos (12,1-14,40). Sendo precedido pela parábola do corpo (12,12-31), aparece como sua segunda parte, tendo, entre as duas, como ponte de ligação, 12,31: “vou indicar-vos um caminho infinitamente superior”. Paulo fala de superioridade porque a comunidade de Corinto era marcada por dar importância aos dons espirituais, milagres, profecias etc, quer dizer, corria o risco de se apegar ao que não era essencial. Assim se compreende a função do capítulo 13: mostrar à comunidade que o ágape é superior a todos os outros dons. Esse capítulo é comumente dividido em três partes:

 1)   13,1-3: A superioridade do ágape

Na primeira parte (1-3) a superioridade do ágape é posta em relação com o falar em línguas humanas ou angélicas (v.1), ao conhecimento de todos os mistérios (v.2) e aos atos de heroísmo e misericórdia (v.3). Respectivamente significam que nem mesmo os dons extáticos, os feitos poderosos ou atos de misericórdia são mais importantes que essa força impulsionadora  da comunidade. Dito de outra forma, sem o ágape,  a linguagem do céu ou da terra é apenas barulho. Os atos poderosos e proféticos são apenas soberba e  atos de misericórdia, caminho para o orgulho.

2)   13,4-7: As obras do ágape

Para compreender melhor a segunda parte, queremos chamar a atenção para uma curiosidade do Templo de Jerusalém no tempo de Paulo. Entre o chamado pátio das mulheres e o pátio dos israelitas existia uma escadaria em semicírculos que contava com 15 degraus. Seria isso simples acaso ou teria algum significado? Certamente há significado.  É uma alusão aos 15 salmos de subida à Jerusalém, salmos que animam a peregrinação à morada do Altíssimo. Paulo, como bom fariseu, provavelmente sabia disso!

O motivo dessa explicação é a curiosa caracterização que Paulo faz do ágape. Na segunda parte (vv. 4-7), o Apóstolo dos Gentios apresenta as obras do ágape por meio de 15 verbos. O número grande de verbos num curto espaço chama a atenção! Partindo do princípio que é comum aos judeus trabalhar com os símbolos, nos arriscamos a dizer que Paulo parece apresentar o ágape como uma força que alegra e motiva a comunidade em sua peregrinação rumo ao outro, e por que não dizer, na subida rumo a Deus?!

3)   13, 8-13: A sua perenidade

No terceiro momento (8-13), apresenta a perenidade do ágape, quer dizer, ele nunca desaparece. Não desaparece porque o próprio Deus é ágape (I Jo 4,16). Ao nosso ver, ele chama atenção para o valor do ágape, talvez esquecido em detrimento de outros dons. O v.13 traz em paralelo a fé, a esperança e o ágape como realidades que permanecem. Este permanecer pode ser entendido da seguinte forma: no presente fazendo um memorial do passado para construir o reinado de Deus. Na nossa leitura, a fé liga ao passado (no sentido de ligar à experiência que aconteceu no evento Jesus), a esperança projeta para o futuro e o ágape faz o elo entre fé e esperança, tornando-os visíveis na comunidade. Por ser elo, aquele que dá sentido, é o mais importante. Sem ele, fé e esperança perdem o sentido.

 Chaves de leituras para hoje:

Ao contrário do que muitos pensam, I Cor 13 não pretende elaborar traços idealistas ou românticos para o cristianismo. O ágape é “sacramento” da fé enraizada, fé que se compromete com o outro, encarnada na história. A espiritualidade paulina se dá de um modo horizontal. Se a salvação é graça, o ágape é ato decidido que me lança ao outro e nele encontro Deus. Se a Igreja é um corpo, o ágape pode ser representado como suas juntas e articulações, sem ele é impossível caminhar.

Partindo da compreensão do ágape com o “sacramento” da fé enraizada, podemos dizer que ele é manifestado pelo compromisso com o outro. Adentrar na realidade do outro, não de modo ideal, mas ajudando-o a recobrar sua dignidade de filho de Deus. O “ágape cristão” nos constrange por sua doação máxima ao outro. Não importando se amigo ou inimigo, conhecido ou desconhecido. O alvo do ágape é sempre o outro! Independe de cor, raça, sexo, opção religiosa etc.

Apesar de termos por bases os ensinamentos cristãos, não nos voltamos apenas para esses, visto que Jesus ensinou-nos, com sua vida, a nos comportarmos como verdadeiros seres humanos, desse modo, o ágape é uma força que está no homem, mesmo que não seja cristão! Ele é essa força que nos faz ir além de nós, de nossos sonhos e de nossos desejos para irmos em busca do outro, de seu ser verdadeiro. Podemos dizer simplesmente que o ágape é ato fenomênico, que se constata na vida cotidiana.

Em suma, o ágape não é sentimento ou ideal, mas ato concreto e decidido que conduz o homem em sua caminhada comunitária. O pedido de Jesus, “amai-vos uns aos outros” (Jo 13,34), manifesta o desejo humano que todos aceitem o próximo como ele é, com suas riquezas e pobrezas. Ele é incondicional porque não espera a mudança para acolher o outro, porém permanece aberto a acolhe-lo a aceitá-lo como está, dispondo-se a perdoar 70 vezes 7, que, na Escritura, indica sempre que necessário.

 

*Membro do Instituto Religioso Nova Jerusalém. Bacharel em Filosofia pela Faculdade Católica de Fortaleza (FCF) e graduando em Teologia pela Faculdade Jesuíta de filosofia e teologia (FAJE).

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