Por Aíla L. Pinheiro de Andrade, NJ*
A pergunta de Jesus, no final do texto de Lc 2:41-50, “não sabeis que devo ocupar-me com o que é de meu Pai?”, foi compreendida ao longo da história da hermenêutica como sendo o fator determinante para a compreensão integral dessa passagem bíblica. Nesse sentido, parecia óbvio que Jesus, desde a infância, quis mostrar aos doutores (rabim, disdáskaloi) a origem divina dele, através de uma sabedoria extraordinária, muito além das potencialidades humanas. “Todos os que o ouviam extasiavam-se com a perspicácia de suas respostas” (v. 47), uma situação ímpar, visto que jamais Jesus será novamente acolhido com tanta simpatia pelos doutores de Jerusalém. Tudo dava a entender que Jesus tinha ido a Jerusalém para demonstrar a origem divina dele antes que começassem os conflitos, com os sábios judeus, durante o ministério de proclamação do Reino de Deus exercido por ele em curto período de vida pública. Sendo assim, a pergunta que usamos como título dessa postagem pareceria um absurdo.
Com o advento da exegese histórico-crítica (século XVII d.C) essas interpretações já não pareciam tão óbvias. A pergunta inicial dos exegetas era sobre o que Lucas estaria querendo afirmar com esse relato, já que esse evangelista não era judeu e seus destinatários imediatos eram cristãos vindo do ambiente gentílico. Uma nova compreensão do texto estava nascendo e o v. 50, “eles não compreenderam as palavras que ele lhes dissera”, parecia dar o tom para a interpretação da narrativa. Quem não compreendeu? Trata-se apenas dos pais de Jesus ou dos leitores do evangelho de Lucas? Durante algum tempo a maioria dos estudiosos esteve de acordo que o relato de Lc 2:41-50 pertencia ao gênero literário “lenda da infância de um herói” e tinha por objetivo preencher uma lacuna na história de Jesus enquanto sublinhava sua santidade e o exaltava perante os sábios judeus, seus oponentes posteriormente. A sabedoria da criança, futuro herói da narrativa, era um dos elementos principais encontrados na maior parte da literatura oriental (Bultmann).
O estudioso Robert Aron, em 1962, foi o primeiro a intuir que o relato lucano poderia estar se referindo a um bar-mitswah (literalmente: filho do mandamento), ou seja, Jesus estaria participando do ritual judaico no qual o adolescente assume publicamente suas responsabilidades religiosas e demonstra ter o conhecimento da Torah (Lei de Moisés) suficiente para isto. Após o ritual é declarada a maioridade do menino perante a religião. Nesse caso, Jesus estaria se submetendo à Torah, igual a todo bom judeu, e não provando a divindade dele. A admiração dos doutores a respeito do diálogo que travaram não seria uma suspeita de que Jesus era divino, mas a constatação de que ele era uma criança bem instruída, com capacidade para bem interpretar as Escrituras. Nesse caso, Jesus não fez mais que sua obrigação de menino judeu ao discutir com os doutores, demonstrando-lhes sabedoria.
A intuição de Robert Aron provocou um alvoroço, pois ela parecia muito lógica, mas era necessário embasar-se em algum texto rabínico para apoiar essa teoria ou ela cairia no descrédito e não passaria de mera intuição. Aron não demonstrou em que se apoiava, mas igual ao “aprendiz de feiticeiro” havia mexido numa alavanca que tirou a exegese dos textos lucanos da órbita na qual estava até então. Agora os exegetas se dividiam, uns a favor e outros contra o bar-mitswah de Jesus. Os que estavam a favor destacavam os elementos do texto como a peregrinação anual a Jerusalém (2:41), a caravana (2:44), o lugar de ensinamento no Templo (2:46), a possibilidade de discussão entre uma criança e os doutores (2:46-47). Todos esses elementos estavam conforme os costumes no tempo de Jesus, por isso era possível tratar-se de um bar-mitswah. Os que estavam contra a teoria de Robert Aron enfatizavam que nos textos antigos do judaísmo não há uma descrição dessa cerimônia e por isso ela deve ser uma prática recente. O Talmud da Babilônia (compilação da doutrina tradicional do Judaísmo) é o primeiro a trazer a expressão bar-mitswah, contudo não está se referindo a nenhuma cerimônia, mas apenas designando o judeu adulto como sendo um “filho do mandamento”, ou seja, aquele que cumpre a Torah (BM 96a, apud MANSS). Além disso, os textos judaicos que descrevem a cerimônia estabelecem a idade de 13 anos para sua realização, argumentam os oponentes de Robert Aron.
Frédéric Manns, renomado estudioso do Novo Testamento no contexto das raízes judaicas e catedrático de literatura rabínica, tomou a si o encargo de esclarecer alguns pontos dessa polêmica. Primeiramente, considerou no relato lucano os elementos que estavam em conformidade com os costumes do tempo de Jesus, os quais foram destacados pelos estudiosos pró bar-mitswah de Jesus. Mas mostrou que é necessário também procurar ver se a teoria de Robert Aron encontra sua fundamentação nos textos da literatura judaica. Isso pode ser possível porque textos rabínicos posteriores ao Novo Testamento geralmente são testemunhas de tradições mais antigas, isto significa que há uma possibilidade de existência da cerimônia de bar-mitswah no tempo de Jesus e que ele pode ter realizado esse rito. Além disso, havia uma hesitação entre os rabinos sobre a fixação da idade, entre doze ou treze anos, para a maturidade religiosa. É provável que a idade tenha variado segundo as regiões geográficas e/ou conforme a maturidade pessoal dos indivíduos. Na Mishná (compilação rabínica de leis orais fruto de interpretações da Torah), no tratado Niddah 5,6 está escrito que “a partir de doze anos e um dia os votos de um jovem são válidos” (apud Manns). O Talmud da Babilônia afirma: “um pai deve ter paciência na formação de seu filho até que este atinja a idade de doze anos, após isto ele deve empregar métodos fortes” (Kethuboth 50a, apud Manns), ou seja, com doze anos a criança passa da fase de aprendizagem para a de obrigatoriedade no cumprimento da Torah.
Por fim, Manns assegura que ambos os grupos de exegetas, os prós e os contra o bar-mitswah de Jesus, não consideraram um aspecto muito importante o qual ele pretende pesquisar e se tornará sua grande contribuição para o debate. Os elementos da narrativa lucana como a menção ao terceiro dia, subir e descer, buscar e encontrar, décimo segundo ano e tomar a Deus por Pai, são colocados, em diversas literaturas rabínicas elencadas por Manns, em relação com o dom da Torah a Moisés e com a obrigatoriedade assumida por cada judeu de cumprir os seus preceitos. Ocupar-se com o que é do Pai (v. 49) é uma expressão corriqueira na literatura rabínica e significa fazer a vontade de Deus cumprindo os mandamentos.
“Se é verdade que o tema do terceiro dia, ao qual estão vinculados os do descender-ascender e os do procurar-encontrar, o de doze anos e o de ocupar-se com as coisas do Pai, têm um vínculo com o dom da Lei, não está excluído que eles indiquem igualmente que, na cena do Encontro, Jesus veio realizar a Lei de Moisés que prescrevia a todo judeu, de tomar sobre si a Lei e de vir a ser um filho da Lei” (Manns, p. 349).
Depois de percorrer vários textos da literatura rabínica, Manns não é taxativo, ele apenas conclui que o relato lucano pode ser um testemunho do bar-mitswah de Jesus. Também admite a existência de muitos outros aspectos na narrativa a serem considerados dentro do plano teológico-literário do evangelista. Talvez possamos acrescentar também que Lucas, escrevendo para cristãos vindo do ambiente gentílico, deseja apresentar um Jesus bem humano, dentro de uma cultura e tradição religiosa e, com isso, evitar que seus destinatários pensassem se tratar de mais um mito ou lenda sobre um semideus à maneira greco-romana. Também a comunidade para a qual Lucas escreve não estava compreendendo quem era Jesus. E o que dizer dos cristãos de hoje? Ah, isto é outra história que requer outra postagem…
MANNS, Frédéric. “Luc 2,41-50 temoin de la bar mitswa de Jesus”. Marianum, Roma, v. 40, n. 121-122, p. 344-349, 1978.
ARON, Robert. Lês années obscures de Jésus. Paris: Bernard Grasset,1962.
BULTMANN, Rudolf. The History of the Synoptic Tradition, Oxford: Blackwell, 1963.
* Aíla L. Pinheiro de Andrade é membro do Instituto Religioso Nova Jerusalém. Graduada em Filosofia pela Universidade Estadual do Ceará e em Teologia pela Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia (FAJE), onde também cursou mestrado e doutorado em Teologia Bíblica. Leciona na Faculdade Católica de Fortaleza e em diversas outras faculdades de Teologia e centros de formação pastoral.