Quem teve a oportunidade de estar em contato com as obras-primas literárias de nosso fundador, Padre Caetano de Tillesse (1925-2010), sabe da admiração que ele tinha pela imagem daquele ícone russo medieval dos “três anjos”. Ele o adotou oficialmente como capa de muitas de suas revistas bíblicas (RBB), das constituições do Instituto Nova Jerusalém e sempre a mantinha por perto… Até que um dia resolveu, com licença autoral, traduzir um texto de língua russa sobre o ícone e, ainda, contribuir com suas intuições sobre essa enigmática e milenar obra sacra. O referido texto encontra-se na conclusão da publicação do quarto número de sua Revista Bíblica, editada em Fortaleza, Brasil, em 1984.
A seguir, os textos enumerado de 1 a 10 em parágrafo referem-se à tradução, o demais são comentário seus. Textos entre colchetes referem-se à pequenas notas de rodapé.
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Escolhemos como capa para a nossa Revista Bíblica um dos mais célebres ícones russos, o ícone chamado de “Trindade do Antigo Testamento”, de Andrei Rublev, pintado em 1425 e conservado na Galeria Tretjakow, em Moscovo.
Achamos que este ícone condensa maravilhosamente todo o conteúdo teológico e místico do Antigo e do Novo Testamento.
A cena representa os três anjos que se hospedaram na Tenda de Abraão, segundo Gên 18. Abraão se encontrava na entrada de sua tenda (certamente uma espécie de alpendre de lona, para proteger contra o sol do meio-dia) perto de Hebron¹, no momento mais quente do dia. Apresentaram-se três homens, que Abraão acolheu com muita honra. ¹[O “Carvalho de Mambré” era um lugar sagrado perto de Hebron].
O tema central do capítulo é o da hospitalidade, sagrada para o nômade. O nômade é julgado pela sua hospitalidade:² quem acolhe um hóspede, acolhe o próprio Deus; quem nega a hospitalidade: rejeita o próprio Deus (Mt 10,40-42). Salienta-se a oposição flagrante entre a hospitalidade de Abraão e a violação grosseira da lei de hospitalidade em Sodoma e Gomorra³. Abraão recebe a sua recompensa, enquanto que os Sodomitas são castigados. ²[Num tempo em que não existia polícia nem governo centralizado para garantir a segurança, o viajante não tinha outro amparo a não ser o da hospitalidade. Durante a noite ou os dias que o viajante passava em casa (tenda) de quem o acolhia, gozava da proteção total da família (tribo) que o acolhia, contra qualquer agressão] ³[Gên 19,15: somente Ló, o sobrinho de Abraão, oferece hospitalidade. Os outros a violam grosseiramente. Compare ainda Jz 19,15-25].
Quem recebe um hóspede recebe ao próprio Deus. Na história de Abraão, existe uma passagem gradativa entre a hospitalidade e a manifestação (teofania) de próprio Deus. De início, são apenas três homens (Gên 18,2). Abraão os recebe como se fosse Deus em pessoa (Gên 12,2-3).
Mas Gên 18 apresenta um deslize misterioso e deliberado. No início, são três homens que se apresentam. No versículo 9, ainda são os três homens que perguntam a Abraão, no momento dos agradecimentos e da recompensa. Mas, no versículo 10, já há apenas um hóspede que se destaca (“o” hóspede). Os dois outros desaparecem. Nos versículos 10 e 14, “Voltarei no próximo ano” está também no singular. Dos três personagens, um se destaca e tem a iniciativa. Os outros dois são apenas figurantes, acompanhantes. Aparecem e desaparecem do quadro.
Nos versículos 16 e 22, “os homens” partem e vão para Sodoma. Parece que apenas dois deles vão para Sodoma, enquanto que o terceiro fica com Abraão. Em Gên 19,1, já se diz abertamente que os dois “homens” são, na realidade, dois anjos.
Enquanto isso, o terceiro é identificado com Javé nos versículos 13-14 e, mais claramente ainda, a partir do versículo 17. No ver sículo 22, os “homens” descem para Sodoma, enquanto que Javé fica com Abraão. A intercessão de Abraão sobe a uma altura mística (compare Ex 32, 11-14). Abraão, o justo, intercede junto a Deus para os pecadores. É um verdadeiro ato sacerdotal e profético (compare Gên 20,7; Núm 17,13; 25,11-13).
No final da história, manifesta-se mais claramente que se tratava de Javé e de dois anjos. Apenas os dois anjos seguem até Sodoma, enquanto Javé volta “para o seu lugar” (o céu). Na história de Ló, no cap. 19, só restam os dois anjos. Javé sumiu.
Portanto, esta história, através da sua ingenuidade aparente, sugere muito mais do que diz. Por isso se diz que Abraão recebeu Deus (Javé) e dois anjos. Mas Rublev identifica os dois “anjos” misteriosos com o Filho e o Espírito Santo. Os três personagens que visitaram Abraão passaram assim a representar a Trindade.
Gostaríamos de traduzir aqui o lindo comentário deste ícone feito por um ortodoxo, Paul EVDOKIMOV:
1. Em 1515, a Catedral da Assunção em Moscovo acabava de ser enfeitada com ícones maravilhosos, obras dos alunos do grande Mestre Rublev. Quando o Metropolita (Arcebispo), os bispos e os fiéis entraram, todos exclamaram: “Verdadeiramente, abriram-se os céus e apareceu a glória de Deus!”. Motivava este entusiasmo o mais esplêndido ícone, o ícone da Santíssima Trindade, obra mística do monge André Rublev, pintada em 1425. Uns cento e cinquenta anos mais tarde, o “Concílio dos Cem Capítulos” o erige como modelo e norma da iconografia e de todas as representações da Santíssima Trindade.
Em 1904, a comissão de restauração retira os enfeites metálicos e, depois de um demorado trabalho de remoção das camadas posteriores, o ícone aparece com tanto fulgor, que os membros da comissão ficaram emocionados. Pode-se afirmar com toda certeza que não existe nada igual, no tocante a síntese teológica, à riqueza do simbolismo e à beleza artística sem par.
2. Três planos estão superpostos. No primeiro lugar, é a lembrança da narração bíblica: a visita dos três viajantes na tenda de Abraão (Gên 18,1-15). O Comentário litúrgico o expressa: “Bem-aventurado és tu, Abraão! tu os viste, recebeste a divindade una e trina”. Mas Abraão e Sara desaparecem da cena, convidando-nos a penetrar mais profundamente até o segundo plano, o da “divina economia”. Os três viajantes celestes compõem o “Conselho eterno” e a cena muda de significado: a tenda de Abraão vira palácio-templo (em cima, à esquerda); o carvalho de Mambré torna-se a árvore da vida do paraíso; o universo é apenas simbolizado pelo retângulo na mesa, a árvore e a rocha; o bezerro do festim de Abraão (Gên 18,7) cede o lugar para o cálice eucarístico.
Os três anjos, leves e delgados, apresentam um corpo muito comprido (quatorze vezes a cabeça, no lugar de sete, segundo a regra da arte clássica). As asas dos anjos, assim como a maneira esquemática de pintar a paisagem, provocam a impressão de algo imaterial, a ausência de qualquer peso terrestre. A perspectiva está às avessas, o que mata a distância e, pelo contrário, aproxima os personagens, mostra que Deus está aí, está em todo lugar. O caráter leve do conjunto – segredo do gênio de Rublev – constitui uma visão alada.
O terceiro plano é apenas sugerido. É transcendente e inacessível. No entanto, está totalmente presente, já que a economia da salvação decorre da vida interior de Deus.
3. Deus é fonte de amor na sua vida trinitária e o seu amor para com o mundo é apenas o espelho do seu amor essencial. A entrega de si, que nunca é carência, mas transbordamento do amor, é representado pelo cálice. Os anjos rodeiam o alimento divino. Pois, as últimas restaurações da obra descobriram o conteúdo do cálice. A camada de pintura posterior representava um cacho de uvas. Mas a obra primitiva, debaixo desse retoque, apresentava um cordeiro, sugerindo uma refeição celeste (eterna): o Cordeiro foi imolado antes da criação do mundo (Apoc 13,8). O amor, o sacrifício, a imolação precedem o ato criador do mundo; são a fonte donde jorra este.
Os três anjos estão em repouso. É a paz suprema do ser total; mas este repouso embriaga: é autêntico êxtase, uma “saída de si em si”. O paradoxo está neste êxtase que permanece em si. São Gregório de Nissa revela bem este mistério: “É coisa muito paradoxal que a estabilidade e o movimento se identifiquem”.
O movimento parte do pé esquerdo do anjo direito, segue na inclinação da cabeça, passa pelo anjo central, arrastando irresistivelmente o cosmos: o rochedo e a árvore, e termina na posição vertical do anjo esquerdo, no qual repousa, como no seu termo final. Ao lado desse movimento circular, cujo termo condiciona todo o demais, como a eternidade condiciona o tempo, a colocação vertical do templo e dos cetros demonstra a aspiração do terrestre para o celeste, onde o voo acha seu pouso.
4. Esta visão de Deus irradia a verdade transcendente do dogma. Da representação dos anjos de Rublev ressalta a unidade e a igualdade. Poder-se-ia confundir um com o outro. A diferença entre os anjos vem da atitude pessoal de cada um para com os outros. E não há repetição nem confusão. O ouro brilhando nos ícones designa sempre a divindade com a sua superabundância. As asas dos anjos envolvem e cobrem tudo na sua extensão, enquanto que o azul claro dos contornos interiores das asas sublinha a unidade e o caráter Os três personagens estão conversando. O assunto devia ser: “Deus tanto amou ao mundo, que lhe deu o seu Filho único” (Jo 3,16). Já que a Palavra de Deus acontece sempre, ela se materializa no cálice celeste da natureza única. Um só Deus e três pessoas perfeitamente idênticas, como o exprimem os cetros idênticos, símbolos do poder real possuído por cada anjo. A maneira divina da tríplice unidade olha para nós e supera as nossas divisões. É um apelo forte que age pela sua simples presença.
5. As formas geométricas da composição são: o retângulo, a cruz, o triângulo e o círculo. Estruturam a imagem por dentro e precisa descobri-las. No pensamento da época, a terra era octogonal, e o retângulo que encontramos na parte inferior da mesa é o símbolo da terra. A parte de cima da mesa também é retangular: encontramos lá o significado dos quatro lados do mundo. Os quatro pontos cardeais representavam, para os Padres da Igreja, os quatro Evangelhos. É o sinal da plenitude à qual nada se pode tirar nem acrescentar. É o sinal da universalidade da Palavra. Esta parte superior da mesa-altar representa a Bíblia, oferecendo o cálice, fruto da Palavra.
Prolongando a linha da Árvore da Vida (atrás do anjo central), vemo-lo descendo, atravessando a mesa e enterrar as suas raízes no retângulo da terra. A Árvore é anunciada pela Palavra, alimentada pelo conteúdo do cálice. Encontramos aí a explicação do seu mistério: por isso a árvore dá frutos de vida eterna, por isso é Árvore da Vida.
As mãos dos anjos convergem em direção ao sinal da terra: é o ponto de aplicação do Amor Divino. O mundo está além de Deus, como um ser de natureza diferente, mas incluído no círculo sagrado da comunhão do Pai. Segue o movimento circular, encontra-se em cima, no celeste, na forma da rocha e o este círculo acaba-se, para o mundo, no palácio-templo. Este templo é como a extensão do Anjo-Cristo, na sua Encarnação. É o seu corpo cósmico, a Igreja, esposa do Cordeiro, unida a ele, sem separação nem confusão. O Templo permanece na imobilidade do dia do Grande Sábado, termo do movimento trinitário. O ciclo da liturgia cósmica está fechado. É a visão escatológica da Nova Jerusalém. A parte dourada do Templo, avançada como uma potência protetrize simboliza a proteção materna da Θεοτόκος (Mãe de Deus) e do sacerdócio dos santos.
Segundo a tradição, é da Árvore da Vida que foi tirada a cruz de Cristo. A cruz é a base invisível mais evidente da composição. A auréola do Pai, o cálice e o retângulo da terra encontram-se numa mesma linha vertical, que divide o ícone em duas partes e cruza a linha horizontal que une as auréolas dos anjos laterais em forma de cruz. A cruz, assim inscrita no círculo sagrado da vida divina, é o eixo vivo do amor trinitário: “O Pai é o amor que crucifica, o Filho é o amor crucificado, o Espírito é a cruz do Amor, o seu invencível poder”. O movimento percorre os braços da cruz, e estes, como os braços abertos de Cristo, abraçam o universo: “Quando eu for exaltado da terra, atrairei tudo a mim” (Jo 12,32). o Filho e o Espírito são as duas mãos do Pai.
Juntando as extremidades da mesa com o ponto que se acha acima da cabeça do anjo central, percebe-se que os três anjos colocam-se exatamente num triângulo equilateral. Significa a unidade e a igualdade da Trindade cujo cume é a πηγαία θεότης (a fonte da divindade), o Pai.
Finalmente, a linha que acompanha os contornos exteriores dos três anjos forma um círculo perfeito, sinal da eternidade divina. O centro deste círculo está na mão do Pai, o Παντοκράτωρ (Todo Poderoso).
6. A atitude do Pai tem algo de monumental. Manifesta a paz hierática, a imobilidade, o ato puro, o perfeito, princípio estático da eternidade. Mas a onda crescente do movimento do braço esquerdo, sua curva poderosa que combina com a mesma potência da inclinação do pescoço e da cabeça, expressam um princípio dinâmico. O caráter inefável do mistério de Deus está na síntese entre a imobilidade e o movimento: a Absoluto dos filósofos, o Ato puro dos Teólogos, o Deus vivo da Bíblia, “nosso Pai que está nos céus”.
A potência divina, afirmada pelo Credo: “Creio em Deus Pai Todo-Poderoso”, é potência paterna do Amor que se manifesta no olhar do anjo central. Ele é Amor e é por isso que só se pode revelar na comunhão e só pode ser conhecido como comunhão. “Ninguém vai ao Pai, senão por mim” (JO 14, 6); e: “Ninguém pode vir a mim, se o Pai não o atrair (Jo 6,44; Mt 11,27). Não é exclusivismo nem limitação arbitrária; é a mais deslumbrante revelação da própria natureza do amor. É impossível um conhecimento de Deus fora da comunicação entre Deus e o homem. Esta última, por sua vez, é sempre trinitária e inicia à comunhão entre o Pai e o Filho: Eis a razão pela qual o Pai nunca se revela diretamente. Ele é a Fonte. Por isto mesmo ele é Silêncio. Revela-se eternamente, mas somente pela mediação do Filho e do Espírito. O ícone mostra essa comunhão, cujo centro irradiante é o cálice.
As linhas, no lado direito do anjo central, vão amplificando-se mais à medida que se aproximam do anjo esquerdo. Na linguagem simbólica das linhas, a curva convexa significam sempre a expressão, a fala, o deslocamento, a revelação. Pelo contrário, as curvas côncavas significam obediência, atenção, abnegação. O Pai está virado para o Filho. Fala. O movimento que percorre todo o seu Ser é o Êxtase. Ele se expressa inteiramente no Filho: “O Pai está em mim. Tudo que o Pai tem é meu”.
7. O Filho escuta. A ondulação de suas vestes expressam a suprema atenção, o abandono. Também ele renuncia a si mesmo para ser apenas a Palavra do Pai: “As Palavras que vos digo, não as digo por mim mesmo. O Pai, que está em mim é quem faz estas obras”. A mão direita do Filho reproduz o gesto do Pai: benzer. Os dois dedos, que se destacam no branco da mesa-altar anunciam o caminho da salvação na união das duas naturezas do Cristo e a comunhão da Humanidade com o Pai.
8. A mão caída do anjo direito indica a direção da bênção: o mundo. Parece cobrir, proteger, “chocar” (segundo a palavra da criação: Gên 1,2). Acima do retângulo do mundo, esta mão aberta é parecida com as asas da pomba.
A mansidão das linhas do anjo direito possui alguma coisa materna¹. Ele é Consolador, mas é também Espírito: Espírito de vida. Ele é quem dá a vida e é nele que toda a vida se enraíza. É O terceiro termo do Amor divino, o Espírito de Amor. Sua colocação é levemente diferente da dos outros dois anjos. Pela sua inclinação e a tensão de todo seu ser, ele está no meio entre o Pai e o Filho. E o Espírito de comunhão e de circunsessão. Este fato é claramente indicado pelo que todo o movimento parte dele. Pelo sopro do Espírito, o Pai se desloca para o Filho, o Filho acolhe o Pai e a Palavra é ouvida. Como o diz São João Damasceno: “Pelo Espírito reconhecemos o Cristo, Filho de Deus e, pelo Filho, contemplamos o Pai”. Na Epifania, é através do movimento da pomba que o Pai se dirige ao Filho. ¹[רוח : Espírito, nas línguas semíticas, é feminino. Os textos siríacos traduzem freqüentemente Consolador, por Consoladora].
9. Na iconografia, as cores possuem a sua própria linguagem. Com Rublev, atingem a uma riqueza sem par, um acordo musical total, com toda a gama dos mais delicados matizes que manifestam-se em todos os pormenores da composição. As cores vivas do personagem central destaca-se na brancura da mesa e nas cintilações da seda dos anjos laterais.
O roxo escuro (amor divino) e o azul profundo (verdade celeste), com o ouro rutilante das asas (abundância divina) constituem uma sintonia perfeita que se reflete em cores mais brandas dos anjos laterais: róseo leve e lilás à esquerda; azul suave e verde prateado à direita. O ouro dos tronos, assentos divinos, fala de abundância de vida.
Assim o Pai, inacessível na vivacidade das cores, revela-se suavemente acessível, na nuvem luminosa do Filho e do Espírito Santo. Visto de longe, a composição dá a impressão duma chama azul e vermelha. Tudo incandesce na luz irradiante do meio-dia: “Quem está perto de mim está perto do fogo”.
A mão do Pai segura o começo e o fim; está estendida acima do cálice. O Cordeiro imolado antes da criação do mundo e o Cor deiro-Templo da Nova Jerusalém, a Santa Ceia do Cristo e a sua promessa de beber do fruto da vinha no Reino do Pai, incluem o tempo na eternidade. O cálice irradia na alvura espléndida da Pala vra, que espelha todas as cores da Verdade. É a irradiação do coração divino, dom recíproco das três pessoas divinas.
10. Do ícone, emana um poderoso apelo: “Sejam um como o Pai e eu somos Um”. O homem é imagem do Deus trino, na sua natureza, a Igreja-comunhão está inscrita como a sua última verdade. Todos os homens estão chamados a reunir-se ao redor do mesmo e único cálice, a elevar-se até a altura do coração divino e participar do festim messiânico, para tornar-se o único Templo-Cordeiro. “A vida eterna (Espírito Santo é que eles te conheçam, tu, o verdadeiro Deus e aquele a quem enviaste, Jesus Cristo”.
A visão acaba nesta nota escatológica: é a antecipação do Reino dos céus, inundada pela luz eterna, banhada por uma alegria pura, desinteressada, uma alegria divina, pelo simples fato que a Trindade existe em nós, que somos amados e que tudo é graça. O espanto jorra da alma e cala. Os místicos nunca falam dos cumes. Só o silêncio os descobrem.¹
Paul EVDOKIMOV: L’Orthodoxie, Neuchâtel, Delachaux et Niestlé. Bibliotèque Théologique, 1959, p. 233-238. ¹[Direitos deste texto reservados por Delachaux et Niestlé, Neuchâtel, comprados por Labor et Fides, l, rua Beauregard, CH-1204 GENÈVE. Tradução publicada aqui com autorização da Editora].
NOTA FINAL
Depois de tão magistral comentário, pareceria ignorância e impertinência querer acrescentar mais alguma coisa. Melhor seria calar e contemplar, como o aconselha Evdokimov na sua última linha. No entanto, atrevo-me a dizer mais uma palavra, salientar mais um pormenor.
O Pai (anjo central) olha para o Filho (anjo esquerdo): “Este é o meu Filho amado; nele eu me comprazo. Escutai-o!”. O Filho é a Revelação, a Palavra (Verbo) do Pai. Mas o Filho, por sua vez, olha para o Espírito Santo, através do braço invisível da cruz. Evdokimov diz que o Espírito é a cruz do Amor. O rosto do Espírito (Anjo direito) identifica-se com a ponta direita da cruz. Como o Pai olha o Filho, assim o Filho olha o Espírito. O Filho revela o Pai (Mt 11,27) e o Espírito revela o Filho (Jo 16, 12-14).
Assim perfaz-se o triângulo: o Pai olha para o Filho, o Filho olha para o Espírito e este olha para o cálice, como ponto final, onde se cristaliza todo o Amor, toda a Revelação da Trindade para com o mundo.
Deus amou tanto o mundo que lhe deu o seu Filho Único: do Pai o olhar desce para o Filho, do Filho para o Espírito e deste para o cálice colocado no altar cósmico que cobre o mundo (retângulo, símbolo da terra): a Missa sobre o Mundo, diria Teilhard.
Tudo isto se concentra como um círculo perfeito ao redor da mesa-altar e do cálice, identificado e integrado no pé da invisível cruz. Mas a cruz não é a Palavra final do Pai.
Se se prestar bem atenção, toda a composição é muito parecida com a representação do sepulcro vazio no dia da Páscoa. Os dois anjos sentados em cima do sepulcro, anunciando a ressurreição de Cristo. É por isso que escolhemos este ícone de Rublev como capa de nossa Revista Bíblica: porque, ao nosso parecer, ela recapitula toda a mensagem essencial do Antigo e do Novo Testa mento, numa poderosa e mística unidade.
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TILLESSE, Pe. Caetano Minette de. Hino da Criação. Revista Bíblica Brasileira – RBB. Ano I, n. 4, Abr. 1984, pp. 126-135.