“Profetas do fogo” x Profetas Bíblicos: 10 distinções

“Profetas do fogo” x Profetas Bíblicos: 10 distinções
Espírito Santo

É preocupante e ao mesmo tempo curioso o fenômeno de pessoas que surgem do nada(?) se autointitulando ou sendo “batizadas” de profetas… Aqui no Brasil está, inclusive, na moda. Quem nunca ouviu uma “profecia” acerca do fim do mundo, de catástrofes, castigos, ou mesmo falar de alguém que marcou uma época e recebeu o título “profeta disso ou daquilo”?

Enquanto isso… “Fogo pra lá, fogo pra cá”… Deus fala com fulano porque ele é “ungido”… Dito ungido porque fala alto, profere antecipações, diz coisas misteriosas e, vez por outra, ainda faz uns malabarismos; mestre em técnicas humanas, consegue prender atenção do público, ganha seguidores, recebe aplausos… Alguns contam até com assistentes para sua propagação nas mídias sociais. O que seria, de fato, um profeta? O que seria a profecia? Tais pessoas são confiáveis? Não cabe a nós julgar o coração ou a honestidade de cada ser humano, mas a nós, a busca por discernimento deve ser imprescindível porque “meu povo será destruído por falta de conhecimento” (Os 4,6).

Estão conseguindo, além de ridicularizar o cristianismo e fomentar histeria, distorcer radicalmente a palavra de Deus? Nosso texto é longo, enfadonho para alguns… Mas esse pode ser um dos problemas de quem não tem ou nega-se a amadurecer e aprofundar a fé. Proponho, então, essas 10 reflexões de autoridades no assunto para tentarmos nos reaproximar da vocação e experiência profética no seu sentido mais genuíno.

1) A Bíblia não vai utilizar apenas um termo para designar um autêntico profeta, algumas vezes ele é identificado como vidente (ro’eh), visionário (hozeh), homem de Deus (’îsh ’elohim), profeta (nabî) ou uma visão desse conjunto trazida pela tradição posterior (Cf. SICRE, 2016, p. 51-56). Em outras palavras, dentro de cada contexto bem específico, não se pode generalizar um profeta, ele é uma figura bem distinta no meio de seu povo, não é qualquer coisa ou do nada que surge um deles;

2) Os profetas são importantes e devem ser considerados não apenas pelo que comunicaram, mas pelo que foram. O profeta é uma pessoa mais que um “microfone”, “o profeta não é somente um profeta. É também um poeta, um pregador, um patriota, um estadista, um crítico social, um moralista” (HESCHEL, 1973a, p. 21), ficando impossível distanciar a profecia destes aspectos, o que também constitui sua singularidade frente aos profetas não-bíblicos. Resumindo: não basta ceder a Deus sua fala, tem que estar pronto para dar a vida. Não é um mero pregador, mas antes de tudo, “mártir” (“testemunha”): no sentido técnico da palavra, é aquele que assimila em sua vida o que acredita e fala. Ele é capaz de sustentar até a morte essa verdade;

3) Aos poucos, a figura do profeta foi confundida e reduzida ao longo da história como mero anunciador do futuro (Cf. SICRE, 2016, p. 51), mas tal sentido torna-se muito “acessório” diante de sua real proposta. “Sua evidência não está necessariamente ligada ao futuro; tem seu próprio valor instantâneo. Sua palavra não é uma previsão; ocorre imediatamente no momento da palavra. A visão e a palavra, nesta profecia, são certamente uma descoberta; mas o que eles manifestam não é o futuro, mas o absoluto. A profecia responde à nostalgia do conhecimento; mas não do conhecimento do amanhã, e sim do conhecimento de Deus” (NEHER, 1975, p. 9). Jogar previsões é muito fácil, mas sem intimidade é impossível “jogar” com Deus; dizer como é Deus para as pessoas é mais urgente que esbravejar ruínas. Definitivamente, o profeta não é um “advogado do Diabo”, Deus o chamou de “meu amigo” (Is 41,8);

4) O profeta é antes de tudo “alguém que foi chamado. É o chamado que define realmente o profeta. Sua vocação nasce no meio de um povo também eleito. É no meio deste povo que se deve entender o sentido da vocação profética: orientar Israel para que caminhe na fé e na obediência diante do Senhor” (SCHÖKEL; SICRE, 1988, p. 31). Assim como ocorre com os pastores, reis e sacerdotes, é Deus quem o elege, trata-se de “vocação” e não de “invocação” (cf. Hb 5,4), não é uma vocação primeiramente individual, mas antes comunitária; é a comunidade que visivelmente aponta e confirma esse chamado, mas não é ela quem lhe confere tal dignidade, e sim o próprio Deus (cf. Nm 14,4; 16,1-3), do contrário, teremos apenas falsos profetas;

5) Os profetas são uma das personalidades mais perturbadoras que já existiram. Para o profeta, nenhum assunto merece tanta atenção quanto à situação do homem, “o tema do profeta é, em primeiro lugar, a vida mesma de todo um povo” (HESCHEL, 1973a, p. 39), por isso sua voz raras vezes se faz secreta, ele narra mais sucessos que história. Contudo, quem procurava boa fama e muitos seguidores, ser profeta não seria uma boa profissão, porque o destino de muitos foi o deserto ou o “fio da espada” (cf. 1Rs 19,9-14);

6) Uma leitura atenta de seus escritos permite-nos perceber muitas vezes seu estado emocional de desânimo, ele está sempre desvelado e sério, seu silêncio é capaz de captar qualquer suspiro silencioso, tem sempre em mente a visão de um fim, O profeta é, sobretudo, aquele que está envolvido da presença divina, “é embaraçoso ser um profeta” (HESCHEL, 1973a, p. 56), nenhum deles parece satisfeito de o ser, é uma distinção, mas ao mesmo tempo, aflição. Parece ser um homem solitário, uma figura misteriosa… “O profeta é humano, mas emprega notas de uma oitava demasiadamente alta para nossos ouvidos. Experimenta momentos que desafiam nosso entendimento. Obviamente que a missão profética não se resume à melancolia: “Quando se apresentavam palavras tuas, as devorava: tuas palavras eram para mim contentamento e a alegria de meu coração. Pois teu Nome era invocado sobre mim, Iahweh Deus dos Exércitos” (Jr 15,16). Não obstante ele “não é nem “um santo cantante”, nem “um poeta moralizador”, mas um assaltante da mente. Frequentemente suas palavras começam a queimar onde a consciência termina” (HESCHEL, 1973a, p. 45);

7) É um vigia, servo, mensageiro de Deus, provador e testador; “não obstante, sua verdadeira grandeza consiste em sua habilidade de prender a Deus e ao homem em um mesmo pensamento” (HESCHEL, 1973a, 62), o que mais lhe impacta não é o fato de ser afetado, mas de afetar os outros. Sua grandeza não está nas ideias que expressou, mas também nos momentos em que experimentou o “pathos” (amor) divino, sua coerência não está apenas no que fala, mas Naquele que o fala, exatamente porque ele é, antes de tudo, como dissemos, uma testemunha;

8) A dignidade do profeta bíblico vai mais além do título que lhe é comumente atribuído de “mensageiro do Senhor”, o que já lhe distingue dos contemporâneos sortílegos, astrólogos, videntes e extáticos. Tal título denota apenas um aspecto de sua consciência, pois o profeta alega ser também uma pessoa que assiste na presença divina (Jr 15,19), ou seja, um conselheiro (Jr 23,18) e testemunha: “Certamente o Senhor Deus não fará nada sem revelar seu segredo a seus servos, os profetas” (Am 3,7);

9) Diante da revelação, os grandes profetas não tinham escolha, a missão era-lhes imposta, eles não se apresentavam voluntariamente, eram seduzidos e subjugados (Jr 20,7; Ez 3,22; Am 3,8; Mq 3,8). Eles estavam tomados pelo temor de Deus e o que garantia a autenticidade de sua profecia não era qualquer coisa externa, “a revelação profética não era simplesmente um ato de experiência, mas um ato de ser experimentado, de estar exposto a, invocado sobre, subjugado e assumido por aquele que procura aqueles que ele envia aos homens. Não é Deus que é uma experiência do homem; o homem é que é uma experiência de Deus” (HESCHEL, 1975, p. 291). O profeta não tem o controle da situação, ao responder a Deus torna-se nada mais que um parceiro, é Deus quem opera tudo em todos. A atividade profética nada mais é que um “passivo teológico”;

10) Os profetas não foram demagogos e populares, justamente porque se opuseram ao “status quo” das sociedades em que viveram, “os profetas eram revolucionários. Os profetas não buscavam o aplauso do Sistema. Clamavam por justiça, honestidade, misericórdia e amor” (MEYER in HESCHEL, 1973a, p. 10), por isso, se a tradição judaico-cristã quer encontrar seu real significado, tem que recorrer à luz destes grandes homens e novamente escutá-los.

Nosso objetivo aqui, na verdade, foi provocar uma sadia reflexão sobre nossa religião, saber se estamos realmente sendo movidos por sentimentos de compaixão, discernimento, amantes da Lei e do Evangelho, ou meros provocadores de ruído; se estamos sendo mediadores de experiências reais do sagrado ou ateadores de “fogo de palha”. Examinar se estamos dando mais atenção ao “dedo” que aponta (instrumento), ou Aquele que é apontado (Iahweh). Que o Deus da Bíblia e dos Profetas continue a suscitar autênticos homens e mulheres capazes de conhecê-lo, amá-lo e torná-lo também conhecido e invocado, autênticos profetas de nossos tempos.

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Narcélio Ferreira de Lima é membro do Instituto Religioso Nova Jerusalém, bacharel em filosofia e bacharelando em teologia pela Faculdade Católica de Fortaleza – FCF.

Referências bibliográficas

BÍBLIA DE JERUSALÉM. São Paulo: Paulus, 2004.

HESCHEL, Abraham Joshua. Deus em busca do homem. São Paulo: Paulinas, 1975.

______. Los Profetas: El hombre y su vocación. Supervisión de Marshall T. Meyer. Buenos Aires: Paidos, 1973a.

LIMA, Narcélio Ferreira de. O pensamento situacional na obra “Deus em busca do Homem” em diálogo com a razão moderna. 2013. 43 f. (Monografia) Fortaleza: FCF, 2013.

NEHER, André. La esencia del profetismo. Salamanca: Ediciones Sígueme, 1975.

SCHÖKEL; SICRE. Profetas I: Isaías e Jeremias. São Paulo: Paulinas, 1988. (Grande Comentário Bíblico)

SICRE DÍAZ, José Luis. Introdução ao profetismo bíblico. Petrópolis: Vozes, 2016.

 

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