SERVO, SACERDOTE E REI
I. INTRODUÇÃO GERAL
A teologia do Antigo Testamento destacou três grandes tipos de mediadores entre Deus e o povo: o Servo do Senhor, o Rei Messias e o Sumo Sacerdote dos últimos tempos. O Rei deveria manter o povo fiel à aliança e defendê-lo de quaisquer adversários. Ele era apenas um representante de Deus, do verdadeiro rei de Israel. O Sacerdote tinha por objetivo fazer o encontro entre o Senhor e o povo, através de diversos tipos de sacrifícios. Nesses ritos, pela mediação do sacerdote, o povo se oferecia a Deus e recebia as bênçãos dessa comunhão espiritual. A missão desses mediadores era a reconciliação do povocom Deus a partir de uma restauraçãoreligiosa e moral. Ao realizar essa reconciliação, cada mediador seria agente de libertação de um cativeiro maior que qualquer outro acontecido na história, a escravidão do pecado. Essas teologias sobre os mediadores estão reunidas em Jesus que as assume, corrige e plenifica.
II. COMENTÁRIO DOS TEXTOS BÍBLICOS
1. Evangelho (Jo 18,1-19,42): Eis o vosso Rei!
Nesse texto temos o relato do julgamento, condenação e crucificação de Jesus O sofrimento de Cristo nos é apresentado à luz da fé no ressuscitado. Por isso, todo o relato é envolvido pela soberania de Jesus. Desde sua prisão até a crucificação, aparece a profunda liberdade de Jesus. Tudo o que lhe acontece é resultado de sua “entrega livre e obediente”.
O que Jesus disse na última ceia a respeito de sua entrega em favor do ser humano, se concretiza agora no processo que culmina com sua morte na cruz. No relato da traição e prisão (18,1-11), dar-se início à glorificação de Jesus pela via crucis. O relato é dominado pela liberdade com que Jesus se entrega. Não são os “inimigos” de Jesus que o prendem, mas o próprio Jesus que se entrega para ser preso e julgado. Manifesta-se assim a liberdade com que conduz sua vida, e o sentido que tem sua morte, pois ninguém poderia pôr-lhe as mãos se ele não se entregasse livremente (cf. 10,17-18).
Durante o julgamento (18,12 – 19,16) permanece o significado dado aos acontecimentos: a entrega de Jesus. E nessa entrega manifesta-se a realeza de Jesus, não no sentido que o mundo conhece, mas como manifestação do dom de si, no amor e na prática da vontade de Deus. Pois, a expressão “Reino de Deus” significa a soberania da vontade divina sobre a criação e a história. No momento de sua morte Jesus mostra o quanto a vontade de Deus é soberana em sua vida, pois nada o impede de cumpri-la, nem mesmo a tortura da cruz. E a vontade de Deus, em resumo é o amor.
A paixão de Jesus (19,17-42) caracteriza-se como reação do mundo às palavras de Jesus. A rejeição que ele sofreu durante seu ministério encontra, aqui, sua forma definitiva. Deus dá sua resposta ante a recusa do mundo: uma resposta de amor, pois aquele a quem rejeita é o vencedor. A entrega de Jesus manifesta-se no seu dirigir-se livremente ao encontro da cruz. Sua hora chegou, a hora de sua exaltação.
A crucificação de Jesus também é antecipação do juízo divino. Na cruz Jesus se torna juiz de seus acusadores. Aqueles a quem foi enviado rejeitam-no. Na cruz realiza-se o juízo escatológico, salvação para os discípulos e condenação para o mundo.
Na cena da mãe e do discípulo, o texto mostra em primeiro plano a comunidade messiânica que nasce em torno da cruz. Ambos, mulher e Discípulo amado, desempenham papeis representativos. A mulher representa a personificação de Sião/Jerusalém (cf. Is 66,7-8; 60,4), e o Discípulo, a comunidade.
Na cruz se consuma a missão de Jesus. O “tudo está consumado” não significa que “chegou ao fim”, mas sim que “a vontade do Pai foi realizada, em tudo e perfeitamente”. A obra que o Pai confiou ao Filho para levá-la ao termo é a revelação do amor: aquele amor que tem sua origem na comunhão entre Pai e Filho e sua realização histórico-eclesial na unidade dos fiéis (17,23).
O que celebramos na sexta-feira santa não é a morte de Jesus, mas sua vitória sobre a morte, a violência, a maldade humana, o egoísmo e tudo aquilo que impede o ser humano de aceitar livremente o amor de Deus e sua vontade.
Jesus, por sua obediência ao Pai, aceita livremente a paixão e a transforma em dom, em revelação de amor. Toda a vida e obras de Jesus foi um reflexo desse amor obediente. E isso se concretiza aqui na cruz. O cume dessa obediência no amor é atingido no ato de entrega de sua vida na cruz por amor. E nessa entrega o caminho para todo ser humano, o caminho do amor filial, que se concretiza na obediência do amor àquele que é fonte de toda existência humana.
2. I Leitura (Is 52, 13-53,12): Eis o meu Servo!
Esse texto inicia assegurando que o Servo triunfará (v.13), mesmo que sua extrema humilhação e sofrimentos (v.14) causem admiração em muitas pessoas. Seu triunfo será tão admirável que impressionará muitas nações e reis ficarão boquiabertos diante dele.
A informação de que as pessoas desviavam o rosto ou o olhar para não vê-lo (53,3) indica que se envergonhavam dele. Contudo, apesar dessa atitude de desprezo, ele é o Servo do Senhor e isto é garantia de seu triunfo sobre as dores.
O texto de Is 53, 4-7 constitui um avanço na teologia do Antigo Testamento, introduzindo um elemento que é a aceitação, por parte de Deus, da vida e morte do Servo como sacrifício expiatório pelo povo.
Os versículos 10 e 11 deixam entrever que há uma fé na ressurreição, porque afirmarm que o Servo, mesmo depois de entregar a própria vida, verá seus descendentes.
O texto termina com a mesma nota de vitória com que começou: que o Servo triunfará (52,13; 53,12). Contudo, as palavras finais destacam o alcance universal da atividade do Servo, que carrega os pecados de uma multidão. Outro aspecto comum entre o início e o fim da seção é que as palavras são pronunciadas diretamente por Deus. Dessa maneira, Deus corrobora o anúncio profético, antes mesmo que comece e também depois que termina.
3. II Leitura (Hb 4,14-16; 5,7-9): És sacerdote para sempre!
O texto nos apresenta o sumo sacerdote superior a todos os demais, que atravessou os céus, entrou na presença de Deus e exerce seu ministério sacerdotal no santuário celeste. Contudo, esse sumo sacerdote, Filho de Deus, também é um ser humano como os demais sem, todavia, pecar. Sendo humano, entende nossas necessidades e fraquezas e, por isso, é solidário conosco. Enquanto Filho de Deus, recebeu autoridade acima de todos os seres. Por tudo isso o autor bíblico exorta os cristãos à perseverança na fé recebida pela palavra da pregação.
O versículo 15 explica a importância da humanidade de Jesus. Ele é capaz de se compadecer de nossas fraquezas porque foi tentado e venceu a tentação. Por isso, pode interceder por nós, para que alcancemos a vitória sobre a tentação, o pecado e a morte. O ministério sacerdotal de Jesus nos dá confiança de nos aproximarmos do trono de Deus. Ele atravessou os céus, como ser humano vitorioso sobre a morte, por isso nos abriu um caminho para Deus.
Além de passar pelas tentações, o nosso sumo sacerdote teve medo da morte e pediu a Deus, com forte clamor e lágrimas, que lhe preservasse a vida e foi atendido porque Deus o ressuscitou. Assim, Jesus teve a experiência comum dos seres humanos, a morte. Por isso, é solidário conosco na nossa maior angústia, porque enfrentou o sofrimento e a morte com os mesmos recursos que temos: a oração e a obediência da fé. Ele não buscou uma saída sobrenatural que não está ao nosso alcance.
III. PISTAS PARA REFLEXÃO
Chamar a atenção para o paganismo disfarçado de cristianismo, ou seja, para a poluição da fé por elementos nocivos. Não se trata de sincretismo propriamente dito, mas da mistura, e até mesmo da identificação, do cristianismo com aspectos contrários à revelação. Antigamente, os mediadores, tinham a função de mostrar ao povo quem realmente era Deus e qual era a vontade divina para com o ser humano. Jesus plenificou na própria vida, morte e ressurreição, a função desses mediadores. Mesmo assim, de modo mais escandaloso que antes, no cristianismo de hoje há uma “baalização da fé” (uma relação com Baal disfarçada de relação com Deus). A corrupção, a avareza, a ambição e todo tipo de dureza de coração, são piores que qualquer sincretismo. Esses elementos são o oposto de tudo que Jesus mostrou, tanto por sua vida quanto por sua morte, sobre a identidade de Deus e do ser humano. Isso se torna mais escandaloso ainda se a liderança religiosa tolerar, apoiar ou até mesmo viver a baalização da fé.
* Aíla L. Pinheiro de Andrade é membro do Instituto Religioso Nova Jerusalém. Graduada em Filosofia pela Universidade Estadual do Ceará e em Teologia pela Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia (FAJE), onde também cursou mestrado e doutorado em Teologia Bíblica. Leciona na Faculdade Católica de Fortaleza e em diversas outras faculdades de Teologia e centros de formação pastoral. (ailapinheiro@bol.com.br)