Roteiro Homilético – 3º Dom da Quaresma

Roteiro Homilético – 3º Dom da Quaresma

UMA PRESENÇA QUE CONVIDA À CONVERSÃO

Por Ir. Aíla Luzia P. Andrade, NJ*

(originalmente retirado da revista Vida Pastoral, Paulus )

I. INTRODUÇÃO GERAL

Deus se faz presente na história através de quem aceita o encargo de falar à humanidade em nome dele. O Criador do mundo guiou os patriarcas, chamou Moisés para libertar os escravos do Egito e, depois de ter enviado os profetas, revelou-se como Pai de Jesus Cristo, o emissário por excelência, ressuscitado e presente nas comunidades cristãs. A constante presença divina na história nos questiona sobre a acolhida que o ser humano ofereceu a Deus através dos tempos. Crises financeiras, desastres e catástrofes da natureza não são as piores coisas que podem atingir à humanidade. O maior desastre que pode sobrevir à criação inteira é a falta de acolhida a Deus por parte da única criatura que é capaz de reconhecê-lo e amá-lo. Porque a criatura não tem a existência em si mesmo, mas a recebe do único EU SOU. Ao ser humano cabe responder em nome da criação inteira: AQUI ESTOU.

 II. COMENTÁRIO DOS TEXTOS BÍBLICOS

1. Evangelho (Lc 13,1-9): O Enviado de Deus os convida à conversão

Esse texto está numa série de discursos sobre a necessidade de reconhecer os sinais dos tempos. Os sinais são um convite à conversão, pois a missão histórica de Jesus marca o fim da espera e inaugura o tempo da decisão a favor ou contra o enviado de Deus. Duas desgraças públicas daquela época são citadas por Jesus com o intuito de corrigir idéias erradas sobre a ação de Deus.

Jesus mostra a necessidade de uma transformação interior e real dos ouvintes, sobretudo o apelo a não se sentirem justos diante de Deus, nem a considerarem as vítimas de desastres como sendo pecadores castigados. A admoestação de Jesus visa modificar a mentalidade da época, assegurando que todos são pecadores e, portanto, todos são convidados à conversão. Converter-se significa acolher a presença salvadora de Deus oferecida em Jesus. Rejeitá-la seria algo pior que um desastre.

Hoje, muitos cristãos ainda pensam que o Pai exigiu a morte do Filho como pagamento pelos pecados da humanidade. Contudo, na ressurreição de Jesus, o Pai mostra que está do lado das vítimas e que o fato de sofrer violência ou desastres não significa ser castigado pelos pecados.

O texto prossegue com a parábola da figueira, que vem confirmar esse chamamento à conversão. A imagem da figueira estéril era muito comum na época para indicar o comportamento infiel do povo (cf. Jr 8,13; Mq 7,1). Apesar da não produtividade da figueira, ainda há uma última tentativa: esperar mais um ano. Lembremos que a atuação de Jesus inaugura o ano jubilar (Lc 4,18). Isso significa que na ação e na palavra de Jesus nos é oferecida a última oportunidade de conversão, de decisão, pois o julgamento está próximo (Lc 13,9).

 2. I Leitura (Ex 3,1-8a.13-15): ‘EU SOU’ me envia a vós para vos tirar da escravidão

Esse texto sobre a vocação de Moisés está dividido em três partes: Deus exigiu que Moisés demonstrasse humildade (3,1–6), informou-lhe sobre o propósito divino (3,7–10), e lhe assegurou que a presença divina o acompanharia (vv. 13–15).

(a) Tira as sandálias (3,1–7). Moisés está acomodado apascentando os rebanhos do sogro e chegou até a Montanha de Deus. O texto mostra que Deus chama o ser humano na vida

cotidiana desde que este se disponha a ir um pouco além da rotina diária. Para tanto, texto bíblico se utiliza de vários elementos simbólicos. A sarça ardente é representada na liturgia judaica como o candelabro de sete lâmpadas sempre aceso no tabernáculo (hoje nas sinagogas) representando a presença de Deus na criação e na história. Caberia ao judeu nunca deixar faltar o óleo (a fé) para que o ser humano fosse tocado pela presença de Deus.

Moisés viu que a sarça ardia e não se consumia porque não é intenção de Deus destruir as coisas para se fazer notado. O termo hebraico para sarça (seneh) soa parecido com Sinai e quer mostrar como o temível Deus do Sinai, a quem Moisés evita olhar, é alguém que se faz humilde num arbusto do deserto e na vida de qualquer pessoa por mais insignificante que pense ser.

Deus conhece Moisés, chama-o pelo nome e quer também se dar a conhecer revelando seu grandioso nome. Ao chamado, Moisés respondeu hinneni, que se traduz por “aqui eu estou” ou “aqui eu sou”. Porque somente estando diante de Deus o ser humano encontra sua própria identidade. Tira tuas sandálias, ordena o Senhor, despoja-te de tua presunção porque eu sou um Deus que sendo grande se faz pequeno. Deixas teus pés tocarem o pó de onde vieste, para que saibas que tua grandeza vem de Deus e não de te mesmo.

Deus não se apresentou a Moisés como um novo deus, mas como aquele que caminhou com os antepassados ao longo da história. Tratava-se do Deus do pacto, um Deus de amor, porque quem ama se compromete com o ser amado. Israel havia se esquecido de seu Deus, afirma a hermenêutica dos mestres judeus sobre esse texto, mas Deus não esqueceu seu povo, não rompeu com a aliança feita com os patriarcas e não deixou de acompanhar aqueles a quem amava.

(b) O propósito divino (3,7–10). O Senhor chama Moisés a uma missão. Dois são os elementos principais desse diálogo; (1) a decisão irrevogável de libertar o povo (v. 8); (2) a escolha de Moisés para ser o instrumento dessa libertação (v. 10).

Os verbos empregados indicam a presença constante de Deus junto ao povo: eu vi, eu ouvi, eu conheço as angústias dele, eu desci, eu te envio. Pela primeira vez Israel é chamada de terra onde corre leite e mel. Essa expressão simboliza tudo que pode estar em contraposição à realidade de escravidão. Mas se a terra prometida tem donos, isso significa que o dom é também uma conquista. Deus não faz 100% porque se assim fosse ele não teria feito um pacto. O Deus da aliança envolve o ser humano em sua ação salvífica.

(c) Um Deus companheiro (3,13-15). Depois de saber do propósito de Deus, Moisés tem uma pergunta, que não deriva de abstrações filosóficas, mas de cunho prático e pastoral: se o povo me perguntar qual é seu nome, o que direi? (v. 13). Nas antigas civilizações o nome significava a própria pessoa, seu caráter, seus atributos, seu ser. A preocupação de Moisés é como é Deus, qual a atividade dele, qual é sua ação.

Deus responde a Moisés com o verbo hebraico “ser/estar”. Como se encontra em uma ação incompleta, devemos traduzi-lo por “era”, “sou”, “serei”, “estava”, “estou”, “estarei”. O Deus sempre presente e acolhedor do ser humano envia mensageiros para que sua presença possa ser efetiva naqueles que estão em situação de escravidão, para aqueles que têm a dignidade negada. Deus é o existente e é a fonte da existência de todos os seres. Seu nome significa que ele é um mistério e só pode ser visto através do ser humano, sua imagem. Por isso qualquer tipo de escravidão é uma ofensa a Deus, pois a imagem de Deus é roubada do ser humano quando sua dignidade lhe é negada.

O “nome” também significa que Deus será conhecido por meio daquilo que faz, ou seja, de sua ação na criação e na história. Ele já agiu em favor dos patriarcas e seu nome enfatiza a presença ativa do Senhor no passado, no presente e no futuro. O versículo 12, que não foi lido nesta liturgia, afirma; eu estarei sempre contigo. Ele estará presente e agindo até o fim dos tempos.

 3. II Leitura (1Cor 10,1-6.10-12): A Rocha que os acompanhava era Cristo

A maior parte da Igreja de Corinto era formada por não-judeus, por isso Paulo preocupa-se com a qualidade da vida cristã nessa grande cidade profundamente marcada pela libertinagem e demais situações de pecados decorrentes da falta de compromisso com o seguimento de Jesus.

O texto proclamado na liturgia de hoje divide-se em duas partes: (a) resumo da narrativa bíblica sobre o período em que o povo viveu no deserto (10,1-6) e (b) uma advertência contra a falsa segurança religiosa (10,10-12).

À maneira dos mestres judeus, Paulo resume e interpreta os acontecimentos da saída do Egito e da peregrinação no deserto. Os principais elementos literários e teológicos são: a nuvem, o mar, o maná e a rocha da qual saiu água (Ex 13-17; Nm 20,7–13). Há um vínculo entre a experiência de Deus, que os cristãos têm no presente, e a experiência de fé vivida pelos hebreus no passado. Os eventos do passado eram prefigurações do que viria em plenitude com Jesus Cristo. O êxodo do Egito foi o ato salvífico do Antigo Testamento e a morte e ressurreição de Jesus são o evento salvífico por excelência. Esses acontecimentos não estão desvinculados. A obra redentora de Jesus Cristo é a obra do Pai.

Antes de entrar na terra prometida, Israel enfrentou vários desafios no deserto que mostraram a fragilidade de sua fé e agora a Igreja deve mostrar a consistência de sua fé. Portanto, a Igreja tem muito a aprender com a história de Israel.

Usando um antigo método judaico de interpretação, Paulo afirma a respeito dos hebreus que saíram do Egito: “todos foram batizados”, “todos comeram”, “todos beberam”. “Todos foram batizados”, ou seja, por meio de Moisés, o libertador enviado por Deus, os hebreus receberam vida nova, deixaram de ser escravos e fizeram uma aliança com Deus. Alguns textos bíblicos aludem ao maná como “o pão do céu” (Sl 105,40). De igual forma, a água que brotou da rocha era um dom de Deus. O maná e a água são descritos como alimentos espirituais porque não eram produtos de Moisés, mas sim de Deus.

E como a água brotada da rocha é mencionada no início (Ex 17,1–7) e no fim (Nm 20,2–13) da peregrinação no deserto, os mestres judeus forjaram a interpretação de uma rocha ambulante que acompanhou o povo por quarenta anos. Isso não é um absurdo, mas um simbolismo profundamente teológico visto que em várias passagens Deus é chamado de “rocha” (Dt 32,4ss). Paulo utiliza a teologia dos mestres judeus para afirma que a rocha era Cristo.

Os hebreus receberam os benefícios da presença divina, mas nem todos assumiram a responsabilidade com o compromisso da aliança. Seu pecado foi duplo (Nm 13-14): (1) duvidar da presença salvadora, murmurando contra Moisés e (2) confiar em suas próprias forças. Paulo usa a narrativa sobre o deserto como uma advertência aos coríntios: o mesmo pode acontecer com eles.

O fato de ter participado do “batismo” em Moisés e provado da comida e bebida espirituais no deserto não garantiu a entrada dos hebreus na terra prometida, tampouco uma participação mecânica na igreja, sem um seguimento genuíno de Cristo, será garantia de bem-estar nesta vida e de salvação eterna.

A presunção dos coríntios lhes fez crer que a participação regular nos sacramentos lhes era garantia de ser verdadeiros cristãos. Mas com uma leitura acurada dos eventos do passado, Paulo procura conscientizá-los desse engano. Os sacramentos revelam a presença de Deus entre nós e nos questionam sobre o tipo de vida cristã que estamos assumindo. Eles não nos foram dados para o conformismo e para a presunção, mas como fonte, cume e critério da práxis cristã.

 III. PISTAS PARA REFLEXÃO

É oportuno perguntar pelo verdadeiro engajamento na Igreja, sobre a qualidade da vida cristã e sobre o significado mais profundo do seguimento de Jesus e suas implicações na vida cotidiana. Também se deve fazer um convite à acolhida da presença de Deus no outro e à conversão diária. É bom perguntar pelos sinais que mostram a veracidade de nossa fé/fidelidade ou a insensatez de nossa presunção.

* Aíla L. Pinheiro de Andrade é membro do Instituto Religioso Nova Jerusalém. Graduada em Filosofia pela Universidade Estadual do Ceará e em Teologia pela Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia (FAJE), onde também cursou mestrado e doutorado em Teologia Bíblica. Leciona na Faculdade Católica de Fortaleza e em diversas outras faculdades de Teologia e centros de formação pastoral. (ailapinheiro@bol.com.br)

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