O Dogma da Imaculada Conceição*

O Dogma da Imaculada Conceição*

Por Ir.Pe. Lauro do Coração Eucarístico de Jesus, N. J**

Dedico toda a reflexão aqui apresentada aos meus queridos irmãos que com a graça de Deus, serão ordenados presbíteros nas primeiras vésperas do “domingo de Maria”(IV do advento), dia 17 de dezembro de 2011, pela intercessão da Virgem nossa Mãe possam exercer santamente o seu múnus pastoral de Santificar, Ensinar e Governar o povo de Deus:

Ir.Paulo Henrique,N.J

Ir.Erasmo Carlos,N.J

Ir.Marcelino,N.J

Ir.Marcus,N.J  ( o “Menino de Maria”)

 

Gn 3,15; Lc 1,28.42

Talvez muitos ainda não observaram, mas no Brasil temos o privilégio de celebrar duas vezes a festa da Imaculada Conceição de Maria: 08 de Dezembro celebra a Igreja universalmente. No Brasil, celebramos também com orações e leituras próprias, mas conservando o essencial da festa e adaptada á realidade brasileira, a solenidade, de “Nossa Senhora da Conceição Aparecida” (12 de Outubro). Pessoalmente nunca entendi porque dizemos “Aparecida”, uma vez que se trata, sem dúvida, de uma manifestação especial da Virgem em nossa querida Pátria, porém o tipo de manifestação (uma imagem pescada), a meu ver, não condiz com o título que recebe. Mas sem dúvida é uma imagem da Virgem sob o título de Nossa Senhora da Conceição. Reverenciar Nossa Senhora sob esta invocação, no mistério de sua Conceição, não era novidade na Terra de Santa Cruz, pois, antes disto a Padroeira era Nossa Senhora da Conceição mesmo! Apenas se acrescentou o título de “Aparecida”. Há muito tempo atrás, antes mesmo da definição dogmática em 1854 pelo Papa Pio IX, os reis de Portugal consagraram o Reino e todos os seus domínios à Nossa Senhora da Conceição. Portanto o Brasil já nasceu com a alcunha mariana. Alguns objetam que seria padroeiro do Brasil São Pedro de Alcântara, mas como se pode verificar na história da família real brasileira, era apenas o santo onomástico dos dois Imperadores que tivemos: D. Pedro de Alcântara I e D. Pedro de Alcântara II.

Mas o que significa a expressão “Imaculada Conceição”? Imaculada quer dizer “sem mancha”, Conceição significa “concepção”, ou seja, o momento exato que um ser humano começa a existir no seio da mãe, isto pressupõe que as outras concepções são manchadas? Isto mesmo, manchadas pelo pecado original[1]. Alguns imaginam que Conceição Imaculada tem a ver com a Conceição virginal do Menino Jesus, é um erro. Outro equívoco é achar que Maria ao ser concebida no seio de sua mãe, Santa Ana, foi concebida virginalmente como ela conceberia o seu Divino Filho. A Virgem Maria nasceu da união normal entre seus pais: São Joaquim e Santa Ana, mas no momento exato de sua concepção, o seu coração foi preservado admiravelmente do pecado original e de todas as suas conseqüências. Outro erro pior, uma verdadeira heresia seria dizer que, em virtude de ser concebida sem pecado, a mãe de Jesus não teve necessidade de ser salva por seu Divino Filho, uma vez que o Cristo veio chamar os pecadores e não os justos. Sendo Nossa Senhora concebida em estado de justiça como pode necessitar de salvação?  A Bíblia diz que quem invocar o nome do Senhor será salvo e somente assim alcançamos a salvação Rm 10,11. Jesus veio para salvar a todos At 4,11; as Sagradas Escrituras dão testemunho que todos os Homens necessitam de salvação, logo Maria, nossa mãe, também necessita de salvação. Diante disto, como fica o dogma da Imaculada Conceição? Sabemos que os católicos acreditam, sobretudo, na Bíblia; nossos “irmãos separados” às vezes nos interpelam, até agressivamente, e dizem que nós inventamos doutrinas estranhas que vão além da Palavra de Deus. Para compreender a fé católica tenhamos sempre presente o que a igreja ensina acerca da Revelação, da Tradição e do Magistério[2].

Durante muito tempo houve grande discussão na Igreja a respeito da possibilidade da Conceição Imaculada de Maria ser uma realidade. Mesmo que, antes da definição dogmática em 1854, já havia até ordens religiosas aprovadas que eram e são totalmente dedicadas à veneração de Nossa Senhora sob este título, como é o caso das monjas concepcionistas, ordem fundada por Santa Beatriz (1426 – 1491). Também temos os Franciscanos, que faziam um quarto voto de lutar pela definição deste dogma, evidentemente após 1854 este costume não teve mais razão de ser, Nossa Senhora da Conceição é padroeira desta ordem, ou melhor, das ordens franciscanas. Esta festa já era celebrada na Inglaterra e Normandia no séc. XI. Nesta discussão temos o nome de grandes Santos envolvidos dentro e fora da Ordem de São Francisco, ou mesmo antes do nascimento do “pobrezinho de Assis” e de sua fraternidade. Uns e outros eram a favor ou contra esta definição e cada um defendia teologicamente o seu ponto de vista. O cerne da questão gravitava sempre em torno do que, abreviadamente, expusemos acima. Nomes como: Santo Irineu, Santo Agostinho, Santo Anselmo, São Boaventura, o beato Duns Escoto, Santo Tomás de Aquino, Santo Afonso de Ligório, etc.

O início da famosa escola teológica Franciscana se dá nos primórdios da Ordem, esta escola desde muito cedo, concebeu especial amor e veneração à Nossa Senhora. Escreveu São Francisco a Santo Antônio:

“Irmão Francisco a Irmão Antônio, meu bispo, saudações. Apraz-me que ensine a Sagrada Teologia aos irmãos, contanto que, nesse estudo, não se extinga o espírito da oração e devoção, como está contido na regra”.[3]

Nesta estimada escola brilhará o “Doutor Mariano” “Duns Escoto”, também intitulado como “Doutor Sutil”, mencionado assim entre outros. Este beato superará as dificuldades e demonstrará a possibilidade e conveniência teológica da conceição imaculada de Maria. Vamos em rápidas palavras tentar expor os argumentos do bem aventurado Duns Escoto:

Escoto tem como fundamento de sua reflexão teológica “O primado universal de Cristo”, aliás, ele é um dos maiores defensores do “cristocentrismo”. Os teólogos da época ensinavam: “Cristo sendo o redentor do gênero humano, obviamente não podia ter sido contaminado com o pecado original. Porém, Nossa Senhora, ao contrário, contraiu o pecado original porque não concebida virginalmente como seu Filho” [4]. Maria teria primeiro começado a existir na carne do pecado, posteriormente e segundo a maneira de se crer na época, quando a alma foi infusa no corpo é que veio a sua santificação e redenção. Por fim, a tese da redenção universal de Cristo exige que todos temos necessidade de sermos remidos, mesmo a Ss. Virgem.

A estes teólogos vai responder o “Doutor Sutil”:

Dizia-se que a carne era o meio de transmissão do pecado original à alma, quando a alma é infusa no corpo, porque a carne foi concebida no pecado. Responde Duns Escoto que o pecado original é na sua essência a ausência de santidade (justiça) original; para alguém ser imaculado (a), portanto, seria suficiente que Deus, nosso Senhor, infundisse na alma, no momento da sua criação, a graça santificante para anular a contaminação com o pecado original e seus efeitos na vida do(a) agraciado (a).

Quanto ao questionamento da relação entre alma e corpo e, se o contágio vem da alma ou do corpo, mais uma vez se revela a inteligência brilhante do doutor mariano. Escoto demonstra que o pecado é apenas a carência da justiça dada gratuitamente aos nossos pais antes do pecado, esta carência não chegaria até nós se nossos pais tivessem vivido com fidelidade o plano de Deus, neste caso, o que chegaria até nós, obviamente, seria a justiça original. Conclui o nosso doutor que o pecado original é uma realidade moral e não física, por isso, o dom da graça ou sua privação não pertence à ordem material. O pecado original não é contraído por meio da carne ou sua concupiscência. No ato sexual os cônjuges dão só a matéria que depois é animada por Deus diretamente.

Esta interpretação dá a “possibilidade” ao teólogo perceber o mistério de fé da Imaculada Conceição de Maria (até onde a mente humana pode alcançar, claro), porque Deus, por meio da graça, pode anular o decreto que impede ao ser humano, neste caso Maria, de ter acesso à justiça original. Continua nosso estimado doutor; porém, a justificação pode vim no momento da conceição, durante a gravidez ou no momento ou depois do nascimento. Se vier depois da conceição existe a contração do pecado original, contudo, se vier no momento exato da concepção existe uma “PRESERVAÇÃO” do pecado original. Maria, então, no mesmo instante em que começou a existir, recebeu de Deus a justiça original.

Cristo é o redentor de todos, como diz a Bíblia, e a Nossa Senhora o Cristo também redime de maneira particular por causa da importância que ela tem para a história de nossa salvação, é uma redenção mais excelente do que a de todos os outros Homens. Redimir do pecado não é só libertar do pecado, mas é antes e sobretudo preservar do pecado. Este é o modo de redenção mais perfeito e sublime!

A oração da missa do dia 8 de dezembro, solenidade da Imaculada Conceição de Maria, foi certamente composta tendo por base a reflexão do Beato Duns Escoto:

 

“Ó Deus, que preparaste uma digna habitação para o vosso Filho, pela Imaculada Conceição da Virgem Maria, preservando-a de todo pecado em previsão dos méritos de Cristo, concedei-nos chegar até vós purificados também de toda culpa por sua materna intercessão. Por nosso Senhor…”

Esta oração resume de maneira genial toda uma reflexão teológica em que o Doutor mariano foi um dos principais artífices. Ela também não só diz que Maria é redimida sendo preservada do pecado, mas insiste que esta preservação do pecado foi em vista dos méritos de Cristo em sua obra de redenção dos Homens.[5] Vejamos também o texto da definição dogmática da Bula “Ineffabilis Deus” do Papa Pio IX:

“Em honra da santa e indivisível Trindade, para decoro e ornato da Virgem Mãe de Deus, para exaltação da fé católica, e para incremento da religião Cristã, com a autoridade de Nosso Senhor Jesus Cristo, dos bem aventurados Apóstolos Pedro e Paulo, e com a nossa, declaramos, pronunciamos e definimos a doutrina que sustenta que a Beatíssima Virgem Maria, no primeiro instante de sua conceição, por singular graça e privilégio de Deus onipotente, em vista dos méritos de Cristo, o salvador do gênero humano, foi preservada imaculada de toda mancha do pecado original, essa doutrina foi revelada por Deus e portanto, deve ser sólida e constantemente crida por todos os fiéis.”

Observemos que o texto da definição traz a expressão que a oração da missa explicita: “…Em vista dos méritos de Cristo…”, certamente para evitar toda ambigüidade doutrinária. Já o concílio de Trento (1542 a 1562) havia afirmado que, não existe nada que impeça a crença na Imaculada Conceição de Maria, mas não achou oportuno para aquele tempo a proclamação de tal dogma. Apenas fez a observação que quando a Igreja o fizesse, colocasse de maneira mais clara possível, a estreita ligação do dogma com o mistério da redenção humana. Isto quer dizer em outras palavras, o que já afirmamos em outro lugar, não se trata, num primeiro momento, privilégio de Nossa Senhora por si mesmo, isto é apenas conseqüência, mas Nossa Senhora é imaculada para nós, para nossa salvação!

O estudo, o pensamento, a reflexão, a oração e a contemplação do grande teólogo Duns Escoto foi decisiva e altamente positiva para a Igreja chegar à definição deste dogma.  Em resumo se pode dizer que ao proclamar este dogma, a Igreja afirma como parte integrante e essencial de sua doutrina, que Maria foi redimida sim, como todos os seres humanos, porém de uma maneira diferente, pois foi “preservada” e não “salva” do pecado original, em previsão dos méritos de Cristo, para a nossa salvação em Cristo. Continua ainda o nosso amado doutor sutil: “Logo, Cristo foi perfeitíssimo Redentor ao preservar sua mãe do pecado original”. Duns Escoto não para por aqui, demonstra também, a partir do conceito de “perfeito redentor”, que os mistérios da Imaculada Conceição e Assunção de Maria, mutuamente se iluminam e estão particularmente ligados entre si. Depois de sua morte, a Escola Franciscana de Teologia, cumprindo a Palavra do Senhor ao dar graças ao Pai por revelar os mistérios do Reino aos mais pequeninos, continuará iluminando a teologia católica, sempre com um pensamento todo especial voltado a Mãe da Igreja. A tese de Duns Escoto foi crescendo e se firmando cada vez mais, se tornou o “cavalo de batalha” dos “imaculistas” (franciscanos) contra os “maculistas” (dominicanos), sabemos que S. Tomás de Aquino, em seus escritos negava a possibilidade da Imaculada Conceição de Maria. A ordem de S. Domingos de Gusmão, como a de S. Francisco de Assis, guardam uma devoção toda especial à Ss. Virgem, são os primeiros e principais propagadores da devoção ao S. Rosário (beato Alano da Rocha) e coroa das sete dores e alegrias de Maria. S. Domingos e S. Francisco, apesar das diferenças, foram grandes amigos. Claro está que, os dominicanos não defendiam sua tese simplesmente pelo gosto de competição e ainda menos, por pouca devoção à Nossa Senhora, é bem ao contrário, mas por amor à verdade revelada que procuravam esclarecer sempre mais.

Depois da morte de Duns Escoto aparece outro astro de 1ª grandeza, S. Bernardino de Sena (1380 – 1440), foi o maior pregador do séc. XV, também pertenceu a mencionada escola franciscana, ficou conhecido como “cantor da beleza da Virgem”, também “doutor mariano” e, sobretudo “doutor da assunção”. Ele aprofundou o pensamento de Duns Escoto, é considerado o iniciador ou precursor da devoção ao Imaculado Coração de Maria.

Pergunta S. Bernardino:

“Que coisa saiu do coração da Virgem?” e responde: “A Mãe de Deus por nove meses deu hospitalidade no seu coração e no seu seio a Deus mesmo… Ela também só pronunciou sete palavras no Evangelho, as palavras de Maria correspondem a sete atos de amor”.

Os textos bíblicos que colocamos no cabeçalho desta reflexão (Gn 3,15; Lc 1,28.42) foram usados por muitos doutores como ponto de partida para a reflexão da possibilidade, real ou não, da Imaculada Conceição de Maria. Contudo, não existe nenhum texto da Escritura que afirme categórica e diretamente esta verdade de Fé;

Sabemos que desde os primórdios do Cristianismo já se discutia esta possibilidade, já acenamos sobre o valor da “Tradição Apostólica” para a Igreja e que esta considera a “Tradição” como fonte de revelação, juntamente com seu Magistério.

Poderíamos nos perguntar qual o papel de Maria hoje, porque tanta reflexão ao redor da pessoa de Maria? Estudar os dogmas referentes à Ss. Virgem nos ajuda a compreender o seu papel eminente na história da nossa salvação, a própria Escritura dá testemunho disto em Jo 2,1-12. O casamento é uma imagem cara aos profetas de Israel para falar do amor de Deus por seu povo, nesta história de amor, Maria, nossa mãe, ocupa um lugar especial, ela não é só mais uma nesta aventura, mesmo também sendo redimida, tem o seu papel especial; aliás, o papel singular da Virgem é um “sinal” para nós, pois Deus, em sua infinita bondade e sabedoria, não salva ninguém sem ativa colaboração nossa. O milagre em Caná começa com a apreensão e observação de Maria, “eles não têm mais vinho” (Jo 2,3b) e se realiza plenamente porque a mãe observa que para o Senhor intervir é necessário que façamos algo, “façam tudo o que ele vos disser” (Jo 2,5b). Para nossa vida cristã e até pastoral é bom que nos deixemos guiar e educar na escola de Maria, este “centro de formação” não afasta de Jesus, pelo contrário, “forma Jesus nos corações e os corações são formados em Jesus” (S. Louís M. G. de Montfort). Por disposição especial de Deus, temos alguém que nos ajuda na caminhada de volta, para o caminho que havíamos perdido (Gn 3,23-24), esta pessoa só poderia ser alguém que pudéssemos chamar de Mãe (Jo 19,27).

“Todas as graças vem por ela, e por meio dela se recebe, porque ela é a Mãe de Graça e a ela deve recorrer quem quer e deseja a graça”.

S. Bernardino de Sena


1. Não queremos aqui nos deter em um assunto que requer atenção redobrada, porém é preciso ressaltar que para um estudante do dogma da Imaculada Conceição é mister, por primeiro, compreender bem o que seja pecado original.

2. Um outro assunto que os estudantes dos dogmas marianos devem estar bem a par, é a temática da revelação divina e como ela se dá em termos da fé católica.

3. Cavaleiro da Imaculada ano 26 nº.08 (299) Agosto/2004. Certamente que S. Francisco de Assis não podia imaginar nem de longe, o alcance desta autorização para se estudar teologia em sua ordem. S. Antônio é considerado o primeiro teólogo da Ordem Franciscana.

4. Lembremos que Maria nasceu da união normal de S. Joaquim e S. Ana e segundo a tradição, como S. Isabel ao conceber João Batista, S. Ana até então era uma mulher estéril.

5. Desnecessário dizer que a obra redentora do Pai, por meio de seu Filho, Jesus, atinge a todos os Homens no tempo e no espaço, pois em Deus não há limites de tempo ou espaço.

 

* À reflexão sobre a Imaculada Conceição de Maria, sugerimos duas outras reflexões do mesmo autor que se intitulam: “Tradição da Igreja e Magistério da Igreja” e “Dogma, imposição ou  certeza emergente da fé?” Isto porque compreendemos ser importante que o leitor aprofunde à luz da fé da Igreja, o significado destes temas para uma melhor compreensão do mistério da Imaculada Conceição da Mãe de Deus e sua relação com a economia de nossa salvação.

 

** Padre religioso do Instituto Religioso Nova Jerusalém graduado em Filosofia e Teologia pelo FCF. Atualmente está se especializando em Estudos Bíblicos nesta faculdade.

 

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