EUCARISTIA

EUCARISTIA

Por Ir.Pe. Lauro do Coração Eucarístico de Jesus, N. J*

INTRODUÇÃO

 

Queremos apresentar uma breve reflexão sobre o sentido das palavras “sacrifício” e “memorial”, elas são essenciais para uma correta compreensão da celebração eucarística.Recomendamos que a leitura seja acompanhada pela meditação das citações bíblicas dispostas ao longo do texto,pois é a partir das Escrituras  que queremos alcançar uma melhor compreensão do Santo Sacrifício.Além disto,veremos também algumas outras expressões relativas à S.Missa.

CEIA, SACRIFÍCIO E MEMORIAL

 

O Santo Padre João Paulo II, de feliz e venerável memória, lançou nos últimos anos do seu magnífico pontificado, dois documentos sobre a Ss. Eucaristia: “Ecclesia de Eucharistia” (A Igreja vive da Eucaristia), de 17 de abril de 2003 (Quinta-Feira Santa) e “Mane Nobiscum, Domine” (Fica conosco, Senhor), para a proclamação do Ano Eucarístico, outubro de 2004-outubro de 2005. Realmente foi a mais perfeita herança espiritual que o querido Papa, amigo dos jovens e dos pobres, nos podia deixar. O primeiro documento é uma “Encíclica” e o segundo uma “Carta Apostólica”. Na Encíclica o Papa apresenta boa parte do tradicional ensino da Igreja acerca da Ss. Eucaristia, na Carta Apostólica, tendo um olhar mais prático para a celebração do Ano Eucarístico, não deixa de ser um resumo do primeiro.

No primeiro capítulo da Encíclica que está intitulado “Mistério da Fé”, nos nº 12,13,14,15 e 16, o Papa discorre sobre Eucaristia como “Sacrifício de expiação”, é sobre este aspecto que queremos conduzir a nossa reflexão.

Segundo nossa observação, e parece ser esta também a da encíclica, este é um aspecto muito negligenciado nos dias de hoje, contudo, não há completa compreensão do mistério eucarístico sem esta abordagem, até mesmo corremos o risco de torná-la inválida, pois é o aspecto mais importante. Muitos cursos de Liturgia, propositadamente ou não, muitas vezes colocam em segundo plano o aspecto expiatório para destacar mais fortemente a “Ceia Fraterna”, sem dúvida que a eucaristia está enraizada na dinâmica de uma ceia familiar, porém observar um aspecto em detrimento do outro, especialmente sendo o aspecto sacrifical, é no mínimo uma heresia, empregando todo o peso e o significado histórico-teológico da palavra.

Para melhor compreender nossa afirmação, vamos abrir a Santa Palavra no Livro do Êxodo 12, 1-28. O Que encontramos aí? A instituição da Páscoa Judaica. É mister aprofundar o significado desta para melhor entender a Páscoa Cristã. No meio do texto indicado, mais precisamente no versículo 14 temos a seguinte ordem: “Este dia será para vós um memorial”… (Ex 12,14). É importante compreender o que significa o memorial na teologia e liturgia de Israel, para entender a nossa missa. Memorial é atualização , ao nível da fé de um mistério que se celebra, atualização porque torna presente no aqui e agora que vivemos, algo passado e que sobrenaturalmente, se projeta para um futuro definitivo em Deus (em Deus não há limite de tempo e espaço). Difere qualitativamente da palavra memória que é apenas uma lembrança do passado e que é revivida apenas na memória de quem celebra, uma lembrança. Devemos guardar bem: Memória é diferente de Memorial. Também não é uma repetição. O sacrifício de Cristo é perfeito e único (Hb 10,11-14.18). Repetir representaria uma falta de compreensão pior que apenas lembrar.[1]

Pois bem, foi neste contexto, que Jesus como bom judeu, cumpre o mandamento de comer a Páscoa. Novamente a Bíblia conduz nossa reflexão, desta vez vejamos Lc 22,7-20. Dá para perceber bem claramente nesta leitura o contexto pascal judaico, os evangelistas não desceram a mais detalhes, pois supunham que boa parte de seus leitores, quando judeus, conheciam o ritual da refeição pascal. Entre outras coisas, havia 03 pães ázimos e 04 cálices de vinho, e o rito de lavar as mãos. Jesus cumpre o ritual, ao mesmo tempo  que o rejuvenesce.

Por exemplo, não vamos dizer que lhe dá um novo sentido, mas que plenifica o já existente, no lugar do presidente lavar as mãos dando graças, talvez foi neste momento, bem no início da ceia que Jesus provavelmente teria feito o tão conhecido lava-pés (Jô 13, 1-20). O texto de São Lucas diz tomou “um” pão (Lc 22,19), obviamente havia outros dois do ritual. O texto apresenta duas das quatro taças que costumavam servir durante a ceia, a primeira e a terceira chamada “cálice da benção”. Vamos observar outra coisa, a palavra que Jesus usa ao tomar o segundo cálice mencionado (terceiro do ritual), o meu sangue derramado, esta palavra implica sacrifício, Jesus une ou torna presente a esta ceia o que iria acontecer em seguida, dá sua própria vida para nossa salvação. E exatamente aqui entra o memorial que já aprendemos o que é[2].

O povo de Israel ao celebrar a Páscoa, afirmamos acima, atualizava pela fé sua libertação. Jesus ao celebrar a páscoa a plenifica de sentido, ao dizer “o meu sangue derramado por vós” transcende a ceia pascal, doravante ela continua sendo memorial mas não de uma libertação apenas humana, como é o caso da escravidão do Egito, mas de uma escravidão que engloba todos os aspectos do ser humano no mais profundo do seu ser.

COMUNHÃO EUCARÍSTICA

Ao ligar o Seu sacrifício à ceia pascal Jesus nos dá a possibilidade de atualizar e torna-LO presente sempre que celebramos a Eucaristia. Portanto, a comunhão eucarística não é simplesmente para se receber o corpo do Senhor, não é apenas algo que possa nos dar emoção por ser o Corpo do Senhor,é algo mais profundo que a simples capacidade de ficar “tocado” que o ser humano tem. Antes de tudo é a possibilidade de participar mística e até fisicamente, em Jesus Cristo de Sua auto-oferta ao Pai, como vítima de expiação.

TRANSUBSTANCIAÇÃO[3]E CEIA

Lutero, no Séc. XVI vai falar de “consubstanciação” com este termo ele queria dizer que ao mesmo tempo que é pão e vinho é o corpo e sangue do Senhor, menos mal, porque Calvino vai dizer uma heresia pior, se é que há heresia pior ou melhor! Calvino vai falar em “presença simbólica” para dizer que o pão e o vinho apenas representam o corpo e o sangue do Senhor. É exatamente a ideia de memorial presente na Escritura e sabendo que a Eucaristia foi instituída dentro desta concepção profunda da Páscoa do povo de Israel, que a Igreja jamais foi claudicante em afirmar que se trata da presença real de uma pessoa com todos os seus atributos, no caso de Jesus, Divino-Humano: Corpo, Sangue, Alma e Divindade. Usando um termo da cultura grega antiga aplica o termo “transubstanciação” e “acidentes”, isto para afirmar que existe, no momento da missa uma troca de substancia (essência) no pão e no vinho que se tornam o Corpo e o Sangue do senhor, embora os acidentes (aspecto exterior) permaneçam os mesmos, cheiro e sabor de pão e vinho. Estudando na Bíblia os termos exatos para a ceia pascal e a instituição da Eucaristia, não dá honestamente falando, para se interpretar de outra forma. Memorial é memorial É necessário dizer ainda que o famoso texto de Jo 6, 1-71 e todo e qualquer outro texto do novo testamento que menciona a presença real de Cristo na Eucaristia não é por si só uma argumentação da presença real, estes textos, ainda que não citem explicitamente, têm em mente a instituição da ceia pascal e o pensamento eminentemente judeu de memorial; portanto, o argumento mais válido e de maior autoridade deve partir desta premissa e lembrando que Deus não pode mentir ainda que muitas vezes não entendamos Seus insondáveis desígnios, como é o caso de se pretender entender apenas racionalmente esta magnífica ação de Deus. Aqui se aplicaria bem a famosa frase de Blaise Pascal: “O coração tem razões que a própria razão desconhece”. É na instituição da fé que se chega a certa compreensão disto que é mais que um sacramento, “… venha a fé por suplemento os sentidos completar…” vai cantar São Tomás de Aquino ao compor todo o ofício da benção com o Santíssimo Sacramento.

ECLESIOLOGIA DA CEIA

Algo de muito importante ainda a ser observado é que os evangelhos dão testemunho que os doze apóstolos, estavam presentes na última ceia (Mt 26,20; Mc 14,17; Lc 22,14), os apóstolos, tendo como cabeça a Pedro, são o fundamento da Igreja, Jesus lhes dá como alimento o Seu corpo e deixa que se inebriem com o Seu sangue, logo a Igreja nasce da Eucaristia(jamais o contrário) por isto, sem Eucaristia não pode existir Igreja no sentido mais pleno da palavra, somente “comunidades com elementos eclesiais”.

MEMÓRIA E MEMORIAL NO MISSAL ROMANO

Ainda bem que a sagrada liturgia não é ato mágico onde as palavras em si mesmas e sem levar em conta a intenção de quem as profere, faz acontecer as mágicas. Caso contrário, estaríamos perdidos enquanto o nosso Missal Romano não fosse corrigido, pois traduziu as palavras da consagração e no lugar de dizer “memorial” troca por memória: “Fazei isto para celebrar minha memória”. A nossa sorte é que se usa memória entendendo-se por memorial. Mas por quê então o padre celebrante na hora não corrige? Para evitar abusos na liturgia a Igreja proíbe terminantemente qualquer adaptação não autorizada, as palavras da consagração são intocáveis. A reforma terá que vir da Sagrada Congregação dos Ritos. A última reforma do Missal foi em 1992 e deixaram escapar. Quando virá a outra, deixarão uma palavra que, em sua materialidade, não expressa bem o que estamos fazendo? Só Deus sabe!

Designamos a Eucaristia como um dos três sacramentos da iniciação cristã. Na verdade, a Eucaristia é algo que extrapola os limites das palavras que usamos para apontá-la, neste sentido podemos dizer que a Eucaristia supera a si mesma, pois é indefinível. Deus não pode ser definido, nem mesmo sob o véu do Sacramento.

INTENÇÕES DE MISSA

Estamos mal acostumados quando nos referimos as tão conhecidas “intenções de missa”. No mais das vezes dizemos: “Missa dos 15 anos de Fulano” ou “do 7º dia de falecimento de Beltrano” ou ainda “em homenagem a Sicrano que…” este mal costume é porque não assimilamos ainda o que é a missa. Não quero dizer com isto que não possamos colocar nossas intenções na missa e até porque, como filhos bem amados do Pai, devemos nos sentir livres e acolhidos para rezar por nossas intenções. Nem quero dizer que todas as vezes que nos referimos ao sacrifício eucarístico, deveríamos usar uma linguagem puramente teológica. Contudo, rigorosamente falando, a missa não é do 7º dia de alguém ou em homenagem a menina que completa 15 anos, a missa é sempre a celebração e atualização do único sacrifício oferecido por Jesus ao Pai, para nossa salvação. O que acontece é que, podemos e devemos, colocar todos os aspectos da nossa vida, bons ou ruins, no único e irrepetível sacrifício de Jesus para que seja “cristificado”, assim nossa oração será perfeita, pois o sacrifício do Cristo é a perfeita doação ao Pai. Os religiosos quando fazem os votos, deixam suas cartas de profissão devidamente assinada, embaixo do corporal sobre o altar eucarístico que está sendo celebrado a missa. Com este gesto simbólico afirmam que sua doação total ao Reino, por meio dos votos religiosos, é feita no único sacrifício de Cristo. Fora de Cristo, sumo e eterno sacerdote, não há doação perfeita de nossa parte. Portanto, a missa é oferecida por alguém, vivo ou defunto, ela alcança a todos não importando tempo ou espaço. Compreendendo bem e sem diminuir a importância que Deus-Pai nos dá como Seus filhos e sem querer ofender ninguém, devemos afirmar categoricamente que, o centro de qualquer liturgia eucarística não é a menina dos 15 anos, por mais bonita que ela seja, e nem o defunto por quem rezamos a missa, por mais importante que ele seja! O centro da missa é a auto-oferta de Jesus ao Pai por nós. Isto, porém não impede que nos momentos de alegria, expressemos liturgicamente o nosso contentamento por aquela intenção ou nos momentos da perda de alguém, deixemos de expressar o seu valor, especialmente afetivo, para nós.

Quero terminar com as palavras da Oração Eucarística IV que explica bem esta última questão: “E agora, ó Pai, lembrai-vos de todos pelos quais vos oferecemos este sacrifício: o vosso servo o Papa…, o nosso Bispo…, os Bispos do mundo inteiro, os presbíteros e todos os ministros, os fiéis que, em torno deste altar, vos oferecem este sacrifício, o povo que vos pertence e todos aqueles que vos procuram de coração sincero”.

CORAÇÃO EUCARISTICO[4]

Precisamos pedir a Deus a graça de um coração eucarístico, um coração assim é contínua abertura para o outro, ele é ao mesmo tempo todo de Deus e no serviço ardente de caridade para com o outro, todo do outro. O coração eucarístico não se pertence, está sempre disponível, está sempre disponível conforme o estado de vida ao qual foi chamado. Na Eucaristia a Igreja é uma só, uma vez que nasce da Eucaristia, se somos um só eucaristicamente, podemos abraçar a quem amamos, vivo ou defunto, quando comungamos. Atenção amigos, do céu e da terra: da próxima vez que receberem o Corpo de cristo, recebam meu abraço fraternal.

 

 


[1] Nossos irmãos separados muitas vezes nos acusam de proclamar a repetição do único sacrifício de Cristo, sobre nossos altares. Certamente porque não compreendem como se aplica a “ideia” de Memorial á atitude do Senhor na última ceia, quando instituiu a eucaristia.

[2] Sacrifício que deve ser entendido como “sagrado oficio” ou “santa atitude” de entregar a própria vida por nós. esta palavra em si mesma não significa necessariamente sofrimento. Porém, para os cristãos, sobretudo, tornou-se sinônimo de sofrimento por causa da atitude de Jesus, que entregando sua vida, não teve como fazer sem derramar o próprio sangue. Neste sentido vão afirmar os Padres da Igreja que não pode haver sacrifício sem derramamento de sangue. Lembremos que na Bíblia o sangue contém a vida. Portanto, se é derramado é oferecido, oferecido em lugar do pecado, ou seja, expiação ou reparação á ofensa feita á majestade Divina. Outro detalhe é que o Homem por si só, não pode oferecer o sacrifício pelo seu próprio pecado, pois é pecador. Mas Deus feito Homem, porque santo, pode. Assim, Deus não deixa de salvar o Homem sem a colaboração do  Homem.

 

[3] Não queremos entrar na discussão que se faz hoje em dia sobre a oportunidade de um momento histórico em que a Igreja achou conveniente fazer uso deste termo para definir o que acontece com o pão e o vinho consagrados. Simplesmente concordamos que foram os termos encontrados para tentar definir o indefinível, que naquele momento histórico, necessitava ser apresentado ao mundo. Damos nosso assentimento de fé á definição dogmática feita pela Igreja no Concílio de Trento, como deve fazer todo fiel católico. Obviamente que a fé na presença real é anterior a Trento e não depende de nenhum concílio mais do que a Escritura ensina. A definição dogmática apenas corrobora e reafirma com a autoridade vinda de Deus, o modo correto de se crer.

[4] A leitura da exortação apostólica pós-sinodal “Sacramentum Caritatis’ de sua Santidade Bento XVI (22/02/2007), será um ótimo meio de aprofundamento de tudo o que tratamos aqui.

 

* Padre religioso do Instituto Religioso Nova Jerusalém graduado em Filosofia e Teologia pelo FCF.

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