A importância do estudo da Bíblia!

A importância do estudo da Bíblia!

Para não cansar nossos visitantes e “ruminiar” melhor este assunto tão importante, resolvemos dividir esta formação escrita pela Ir. Ayla L. Pinheiro* em três partes, as quais serão postadas semanalmente. Segue a 1ª parte:

I- Condição prévia: a humildade

Deus é infinito em suas perfeições. Isto levanta a questão: que lugar haveria para a criação? Os sábios judeus tentaram responder esta questão a partir do conceito de tsimtsum. Para que pudesse existir o diferente de Deus, ou seja, a criatura, o Criador antes teria criado o vazio (tohu), ou abismo (tehom, Gn 1,2). Com esta analogia se quer dizer que Deus cedeu espaço para o diferente, contraiu-se (tsimtsum) para que a criatura pudesse vir à existência.

O termo tsimtsum possui duas vezes a letra hebraica tsadi. E entre os métodos de meditação judaica, está aquele de contemplar as letras. Ao contemplar o tsadi, o místico recorda, traz de volta ao coração, centro de sua existência, o mitswah (o preceito). E qual seria o preceito, ou seja, aquilo que resume a vontade de Deus para o ser humano e o faria participante da vida divina? (Lc 10,27). “Amarás, pois, YHWH, teu Deus, de todo o teu coração, de toda a tua alma e de toda a tua força” (Dt 6,5). “Amarás o teu próximo (rea‘) como a ti mesmo. Eu sou [YHWH]” (Lv 19,18b).

Quem é rea‘? O termo limita-se ao cidadão, ao conterrâneo, a alguém da mesma categoria ou profissão, ou a um judeu observante, ou teria um sentido universal incluindo todo ser humano? A chave da interpretação estaria nas palavras finais da ordem “EU SOU”. YHWH é o criador e o libertador. Esses dois eventos bíblicos, criação e libertação, destacam exclusivamente a ação de Deus. São os fundamentos da fé judaica. Todo o sistema de bênçãos, orações, festas e rituais está alicerçado na fé no Deus criador e na memória do Êxodo do Egito.

Esses dois eventos estão inter-relacionados e servem como fundamento das relações interpessoais e da ética. Se YHWH é criador, então, todos os seres humanos são criaturas; todos são irmãos, filhos do “casal primordial”. E como YHWH é libertador, não há nenhuma justificativa para qualquer tipo de escravidão. Por isso a lei do sábado serve para defender o valor de cada criatura (Ex 20, 10-11) e o significado da libertação (Dt 5,14-15). É uma lei que favorece a todos.
É por este mitswah (preceito) que o ser humano pode ser tsaddyqq (justo) em relação ao projeto de Deus para o ser humano. Pois justo significa aquele que se ajusta, que se configura ao que Deus espera do humano. Amar a Deus e ceder lugar ao diferente é a justiça (tsedaqah). É este o mitswah fundamental. Por isso os místicos contemplam as duas maneiras de grafar a letra tsadi. A que vem no início e meio da palavra: imita um justo ajoelhado. A quem vem no final da palavra, imita o justo de pé louvando com as mãos para o céu e mais parece um risco, para dar espaço à próxima palavra.

Quem não cede espaço ao diferente torna-se um Egito para o outro. Egito, Mitsrayim em hebraico, é outra palavra que contém a letra tsadi, mas em sentido negativo. Vem da raiz acádia matsur que significa sitiar, assediar, estreitar, restringir. É o contrário de tsimtsum. Em vez de contrair a si próprio para permitir que o diferente cresça, ao contrário, restringe-lhe o espaço e comete idolatria, pois quer ser um deus para o outro. Por isso a opressão e escravidão são idolatria e o Deus doador da vida é o Deus libertador.
Para os sábios, o tsimtsum de Deus foi necessário para criar o mundo e o tsimtsum do estudioso da Torah é igualmente necessário para salvar o mundo. Porque a Torah é instrução de Deus, é a palavra divina orientadora do ser humano sobre o que Deus espera dele. E dentro da palavra Torah temos o termo “or” que significa luz. Por isso diz o salmista: “Lâmpada para os meus pés é a tua palavra e luz para os meus caminhos” (Sl 119,105). Assim, a primeira palavra dita por Deus criou a luz para que a criação não ficasse nas trevas dentro do vazio, do abismo.

II- A dimensão existencial e soteriológica do estudo bíblico

Diz o profeta Oséias:
“Escuta (shema‘[1] a palavra de YHWH, vós, filhos de Israel, porque YHWH tem uma contenda com os habitantes da terra, porque nela não há verdade (’emeth), nem misericórdia (chesed= hessed), nem conhecimento (da‘ath) de Deus. O que só prevalece é perjurar, mentir, matar, furtar e adulterar, e há arrombamentos e homicídios sobre homicídios. Por isso, a terra está de luto, e todo o que mora nela desfalece, com os animais do campo e com as aves do céu; e até os peixes do mar perecem. Todavia, ninguém acuse, ninguém ponha a culpa em ninguém; minha acusação é contra ti sacerdote (=mediador)! Tu tropeçarás de dia, e o profeta (= boca de Deus) contigo tropeçará de noite. Assim vais levando o meu povo ao pecado² . O meu povo está sendo destruído (=cortado), porque lhe falta o conhecimento (da‘ath). Por tua causa, sacerdote, pois rejeitaste o conhecimento, também eu te rejeitarei, para que não sejas sacerdote diante de mim; visto que te esqueceste da Torah do teu Deus, também eu me esquecerei de teus filhos” (Os 4,1-6)[2].

Para Oséias, o amor a Deus só é possível no amor ao próximo. Esta concepção é tão cara ao profeta que ele simboliza o amor entre Deus e Israel com o amor entre Oséias e Gomer. E é nesta perspectiva que a perícope acima deve ser lida. Não há amor a Deus sem amor ao próximo (cf. 1Jo 4,20).

No v. 1 o profeta menciona o que falta:
– ’emeth: firmeza, fidelidade, verdade
– chesed (ch=rr): misericórdia
– da‘ath: conhecimento, discernimento, intimidade.

A falta destes elementos ocasiona os pecados relatados no v.2. Pois sem a ligação de intimidade (da‘ath) da criatura com a fonte de sua existência, o Criador, não é possível a vida. É como uma planta sem a seiva, ou um feto sem o cordão umbilical. Por isso, depois de narrar a morte no sentido das relações sociais, as quais se tornam impossíveis sem o amor ao próximo (chesed), o profeta relata que a terra está em ritual fúnebre (luto) e a criação desfalece (perde a consistência, pois falta (’emeth). Enferma está a criação. O termo enfermo nos idiomas antigos, inclusive o latim infirmu significa falta de firmeza, firmu.
Como para o pensamento judaico o conhecimento da‘ath é o que liga a criatura ao Criador, então sem este vínculo, o povo está cortado (termo que geralmente é traduzido por “destruído”). E quem o culpado disto tudo? O sacerdote, o mediador que deveria fazer a ligação, não só dos seres humanos, mas de toda a criação com Deus. O outro culpado é o profeta, aquele que fala ao povo no lugar de Deus. Em sentido cristão esta exortação torna-se mais grave porque cada cristão é sacerdote e profeta.
E o que é mais grave de tudo, especialmente para a Nova Jerusalém é o motivo deste corte da seiva ou cordão umbilical: “te esqueceste da Torah do teu Deus”. A Torah, para os judeus é o que chamamos de Pentateuco. Mas o Pentateuco não é toda a Torah. Os judeus acreditam na Torah oral. E também que todos os livros da Bíblia dizem a mesma coisa que a Torah. Esquecer a Torah, então, é esquecer a Palavra total de Deus, traição e Escritura. Este é o maior pecado segundo o Deuteronômio (Dt 4,9), pois esquecer a Torah é esquecer Deus e tudo que Ele fez e disse. E assim, se isto leva Deus a entrar em contenda (julgamento) contra Israel o que não significará esquecer a Torah para alguém que faz um voto de estudar a Palavra de Deus?
O meu povo está sendo destruído (=cortado), porque lhe falta o conhecimento (da‘ath). Por tua causa… visto que te esqueceste da Torah do teu Deus…

 

NÃO PERCA PRÓXIMA CONTINUAÇÃO DA PRÓXIMA FORMAÇÃO:  “A dimensão contemplativa do estudo bíblico


* Aíla L. Pinheiro de Andrade é membro do Instituto Religioso Nova Jerusalém. Graduada em Filosofia pela Universidade Estadual do Ceará e em Teologia pela Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia (FAJE), onde também cursou mestrado e doutorado em Teologia Bíblica. Leciona na Faculdade Católica de Fortaleza e em diversas outras faculdades de Teologia e centros de formação pastoral.

 

 

Voltar ao Topo